A IMPORTÂNCIA DOS DIREITOS HUMANOS NA ATIVIDADE POLICIAL MILITAR NO ÂMBITO DO POLICIAMENTO OSTENSIVO NA CIDADE DE MANAUS
Autores:
CAP PM HUONEY HERLON GOMES
CAP PM LEANDRO BENEVIDES FERREIRA DE SOUZA
OS TREZE DA APM JARAQUI
O Trabalho Científico foi apresentada em forma de Monografia pelos autores à Universidade do Estado do Amazonas – UEA, em convênio com a Polícia Militar do Amazonas, a Academia de Polícia Militar, “Cel PM Neper da Silveira Alencar”, do Instituto Integrado de Ensino em Segurança Pública – IESP, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Segurança Pública e do Cidadão, tendo ainda como orientador o Cap PM José Cláudio da Silva, em Março de 2005, época em que os nobres oficiais eram ainda Alunos-Oficiais Policiais Militares, postulando o Aspirantado da primeira turma formada no Estado do Amazonas.
INTRODUÇÃO
Vivemos atualmente na era da globalização, do conhecimento e da quebra de paradigmas. Hoje, para a instituição pública sobreviver, seja ela qual for, torna-se imperativo que ela se ajuste aos novos tempos. É por isso que se exige cada vez mais dinamismo e flexibilidade para se adaptar às novas demandas sociais. Nesse novo contexto, cada agente aplicador da lei tem que cumprir sua missão com os olhos voltados para a proteção da dignidade humana.
Direitos humanos e atividade policial-militar, num primeiro momento parecem dois termos inconciliáveis e antagônicos, entretanto, ambos têm muito em comum e até se complementam, na medida em que, enquanto um busca resgatar princípios que dignificam o homem, o outro visa à incolumidade do cidadão. Percebe-se logo que a nobreza da missão policial caminha, em sua essência, paralelamente com os conceitos tutelados e amplamente divulgados pela doutrina dos direitos humanos.
Apesar de aparentemente distante de nossa realidade, todavia, o pleno respeito aos princípios e valores da pessoa humana é, sim, uma utopia imprescindível para sobrevivência da instituição. Nesse sentido, com os olhos voltados para o futuro, mas com ações no presente, este trabalho de pesquisa visa a trazer informações sobre a atividade policial-militar da nobre Corporação no âmbito do policiamento ostensivo na cidade de Manaus. Visa, sobretudo, a trazer subsídios para uma posterior análise de conjunto sobre como os agentes aplicadores da lei vêm pautando suas ações no atendimento e prestação de serviços à comunidade manauense.
1. SITUAÇÃO PROBLEMA
Tema bastante em voga nos dias atuais e de suma importância, principalmente para as organizações policiais, são os direitos humanos. Entretanto, cotidianamente, observam-se os mais variados tipos de desrespeitos aos direitos fundamentais, notadamente no referente às forças repressivas do Estado, onde se insere a briosa Polícia Militar, da qual a sociedade não tolera mais os abusos que a mídia anuncia sempre com relativo destaque. Hoje, é ponto pacífico que deve existir uma íntima relação entre Polícia Militar e direitos humanos. Conforme afirma Nascimento:
É patente que a polícia deve pautar sua conduta mediante o respeito aos direitos humanos, toda a sociedade assim o deseja, tanto que diversas leis promulgadas a esse respeito são verdadeiros freios contra possíveis ações ilegais por parte da polícia. Quando se pensa em direitos humanos, o primeiro inimigo que se vê à frente é a polícia (2003).
Doutrinadores como Nascimento consideram o policial um agente estatal repressor e não um sujeito parceiro da sociedade. Especula que talvez esta situação seja fruto, dentre outras causas, da ditadura, momento em que a polícia exerceu papel puramente repressivo cujos resquícios ainda hoje são sentidos pelas corporações policiais-militares.
Segundo noticia a mídia, tanto escrita quanto falada, a violência policial é um fato e não um caso isolado. E se é um fato e não raro, então deve ser visto e encarado como uma situação problema preocupante, haja vista que a violência praticada pelos agentes da lei, que deveriam proteger a sociedade, ameaça a estrutura do Estado Democrático de Direito sob a égide da qual vivemos.
Sabe-se que a Polícia Militar é só um dos aparelhos repressivos de que dispõe o Estado e como tal detém o monopólio do uso da força desde que legítima e dentro dos padrões legais aceitáveis que justamente diferencia o aplicador da lei do marginal. Dessa forma, a violência policial inevitavelmente gera as mais graves violações aos direitos humanos que são princípios tutelados tanto na jurisdição interna quanto externa.
Se a Polícia Militar é sobremodo importante para a preservação da ordem, logo é imprescindível para os direitos humanos. Se durante o regime militar a idéia era de que todo cidadão era considerado um potencial inimigo do Estado, hoje a ideologia é outra, completamente divergente daquele período, na medida em que o policial deve, nos dias atuais, pautar sua conduta em normas e princípios norteadores que não descartem a questão dos direitos humanos, surgindo como uma natural conseqüência a proteção dos direitos individuais por parte dos milicianos.
Também é sabido que vivemos atualmente na era do conhecimento, da quebra de paradigmas, de novas realidades nacionais e mundiais, além de avassaladoras transformações nos tradicionais modos de pensar e agir. E dentro desta nova lógica, “o cidadão não pode mais ser visto como ‘inimigo’ ou ‘elemento adverso’, como nos impuseram no passado, porque a polícia não existe para a defesa do Estado ou de instituições, mas para a defesa do cidadão”(MANOEL, 2004, p.3).
Hoje, a eficiência do trabalho policial não pode mais ser pautada dentro do modelo autoritário, onde o desrespeito aos direitos fundamentais é o meio para se atingir objetivos nem sempre legais, conforme afirma Crawshaw :
Violar os direitos humanos, desrespeitar as normas legais com o propósito de aplicar a lei não é considerado uma prática policial eficiente, apesar de algumas vezes se atingirem os resultados desejados. Quando a polícia viola as leis com o intuito de aplicá-la, não está reduzindo a criminalidade, está se somando a ela (2001).
Assim, diante deste cenário, formulamos o seguinte questionamento: o policial militar, no desempenho de sua atividade fim, em todos os níveis hierárquicos, sabe quando e como promover os direitos humanos?
1.1 JUSTIFICATIVA
Esta pesquisa surge do fato de que existe uma real necessidade de investigar se os policiais da milícia amazonense conhecem e sabem como promover os direitos humanos, haja vista que a atuação em desacordo com os preceitos éticos e legais, ou seja, demasiadamente arbitrária, vem sendo constantemente noticiado com algum destaque pelos veículos de comunicação de massa.
Hoje em dia, verifica-se que há uma estreita relação entre direitos humanos e a atividade policial-militar, na medida em que segurança pública é um direito fundamental do homem, essencial para a promoção de sua dignidade humana. Todavia, apesar da reconhecida importância, percebe-se que a nobre milícia herdou de um passado não muito distante “práticas policiais muito das vezes incompatíveis com o espírito democrático” (BALESTRERI, 2003, p.17). Observa-se ainda que há policiais que agem à margem dos mandamentos éticos e jurídicos que norteiam a atividade do encarregado de aplicar a lei, seja por má fé, má formação, por superficialidade ou mesmo completa ignorância sobre o assunto. “Policial violento é policial de pouco profissionalismo, de nenhuma formação ética sólida, sendo assim, compromete [a si mesmo] e toda a corporação policial” (AMARAL, 2003, p. 59).
É esse mau policial que fomenta o desprestígio social de toda uma classe, cuja missão é nobre e do mais alto valor humano. “Vivemos no mundo de massas, onde seria absolutamente impensável a garantia dos direitos democráticos sem o poder de polícia” (MANOEL, 2004, p. 8).
Nesse sentido, a polícia deve exercer sua função social sempre embasada na legalidade, haja vista que sua missão precípua de manutenção da ordem pública não pode descaminhar para a barbárie, por isso a importância de incutir nas corporações uma cultura de direitos humanos, conforme afirma Balestreri:
Nos dias que seguem, praticamente ninguém tem dúvidas a respeito da relevância do papel policial na edificação de uma cultura de direitos humanos, antes há consonância já que só há eficiência policial com respeito às leis e aos direitos humanos, por outro lado, não há respeito às leis e aos direitos humanos sem a eficiência policial (2003,p.19).
Investigar se o policial militar, em todos os níveis hierárquicos, sabe quando e de que forma promover os direitos humanos, diante das pressões e exigências sociais é de fundamental importância para a corporação, devido à grande relevância e atualidade do tema. Além de que pode contribuir para futuras propostas no sentido de adaptar a atuação dos integrantes da milícia amazonense à realidade social atual, visando a quebrar paradigmas, pois “os desafios que guardam o futuro dos direitos humanos passam pela criação de mecanismos e instrumentos ligados à promoção, à proteção e à educação dos direitos humanos” (JORNAL A CRÍTICA, 2001).
1.2 OBJETIVOS
1.2.1 Geral
Consistiu em verificar se o policial militar promove ou pratica, enquanto agente aplicador da lei, os pressupostos e princípios que fundamentam a doutrina dos direitos humanos, no âmbito da sociedade manauense nos dias atuais.
1.2.2 Específicos
Foi também propósito deste trabalho:
· Identificar quais os princípios que fundamentam os direitos humanos, principalmente aqueles voltados para a atividade policial.
· Verificar se os policiais militares já tiveram contato com a doutrina de direitos humanos voltados para a atividade policial, observando o nível de entendimento tanto dos oficiais quanto das praças.
· Verificar se os policiais que possuem o curso de multiplicadores da doutrina de direitos humanos têm oportunizado seus conhecimentos aos demais integrantes da corporação.
· Verificar qual é a visão do público externo no referente às questões de direitos humanos voltados para a polícia militar.
1.3 QUESTÕES DE ESTUDO
A pesquisa firmou-se nas seguintes questões previstas no respectivo projeto:
· O que fundamenta e o que são os direitos humanos? Existe uma doutrina de direitos humanos?
· Que instrumentos existem para assegurar a proteção aos direitos humanos?
· Qual a importância dos direitos humanos para a corporação?
· De que forma a sociedade civil vê a atuação dos integrantes da corporação no que tange aos direitos humanos?
· De que forma o policial, em referência a sua atuação junto à população, pode ser um promotor dos princípios que fundamentam a doutrina dos direitos humanos?
1.4 METODOLOGIA
Visando a buscar elementos comprobatórios, elaboramos um Projeto de Pesquisa em que estabelecemos que a pesquisa fosse de campo, por meio de questionários aplicados dentro da Polícia Militar e junto à sociedade amazonense.
Utilizamos também dados bibliográficos, utilizando como fontes autores de renome nacional e internacional, legislação nacional e internacional, periódicos, jornais, e, por fim, nossa observação pessoal dos fatos sociais.
1.4.1 Natureza, Método e Tipo de Pesquisa.
Este trabalho caracterizou-se como uma pesquisa de campo, que, para Marconi, “... é aquela utilizada com o objetivo de conseguir informações e/ou conhecimentos acerca de um problema, para qual se procura uma resposta, ou de uma hipótese, que se queira comprovar ou, ainda, descobrir novos fenômenos ou as relações entre eles” (1990, p.75). Na afirmação de Andrade, “... baseia-se na observação dos fatos tal como ocorrem na realidade. O pesquisador efetua a coleta de dados “em campo” (2003, p.125), isto é, diretamente no local da ocorrência dos fenômenos. Para a realização da coleta de dados (qualitativos) foram utilizadas técnicas específicas, como a observação participante, os questionários e as entrevistas. Preliminarmente, caracterizou-se também como uma pesquisa bibliográfica. Tais pesquisas foram feitas de modo interdisciplinar.
Para se conseguir os dados atinentes a esta pesquisa, coube o método monográfico. Para Lakatos e Marconi é “[...] um estudo sobre um tema específico ou particular de suficiente valor representativo e que obedece à rigorosa metodologia. Investiga determinado assunto não só em profundidade, mas em todos os seus ângulos e aspectos, dependendo dos fins a que se destina” (1996, p. 151). Para Andrade, “a vantagem do método consiste em respeitar a ‘totalidade solidária’ dos grupos, ao estudar em primeiro lugar, a vida do grupo em sua unidade concreta, evitando a dissociação prematura de seus elementos” (2003, p.135).
Portanto, optamos pela pesquisa de campo, pelo método monográfico e pela abordagem qualitativa.
1.4.2 População e Amostra
População: Unidades da PMAM, Distritos Policiais do Amazonas, Zona Leste da cidade de Manaus.
Unidades de pesquisa: Unidades Militares da Capital do Amazonas, Distritos Policiais da Capital, bairros da Zona Leste de Manaus.
Sujeitos investigados: praças e oficiais que trabalham na área operacional em Manaus, detidos e/ou presos temporários, moradores dos bairros de Manaus.
1.4.3 Procedimentos de Coleta de Dados
Diante da abordagem qualitativa, este trabalho, nesta etapa da pesquisa, colheu informações representativas dos participantes, envolvendo direitos humanos e atividade policial-militar, objetos desta pesquisa. Os dados coletados foram elaborados, analisados, interpretados.
Com essa coleta de dados, procurou-se, mediante os instrumentos utilizados, informações racionais, verídicas, factuais que complementaram e permitiram compreender, através da análise, os questionamentos levantados.
1.4.4 Procedimentos da Análise de Dados
Segundo Rauen “é a parte que apresenta os resultados obtidos na pesquisa e analisa-os sob o crivo dos objetivos e/ou das hipóteses (1999, p. 141)”. Assim, a apresentação dos dados é a evidência das conclusões e a interpretação consiste no contrabalanço dos dados com a teoria.
Para Triviños (1996, p.161), o processo de análise de conteúdo pode ser feito da seguinte forma: pré-análise (organização do material), descrição analítica dos dados (codificação, classificação, categorização), interpretação referencial (tratamento e reflexão).
E Assim se fez nesta pesquisa qualitativa, ou seja, respostas/conteúdos/dados foram analisados baseando-se nas questões de estudo e nas considerações teóricas sobre os direitos humanos na atividade policial militar na atualidade. Em seguida, buscou-se interpretar os significados assumidos na conjuntura policial militar, direitos humanos e sociedade manauense.
Na interpretação, levou-se em conta, em primeiro lugar, a situação atual do serviço do policial militar no cotidiano. Em segundo lugar, fez-se um encontro (comparação/confronto) com os resultados obtidos na investigação, pois é sabido que a interpretação também é um processo de analogia com os estudos assemelhados, de forma que os resultados obtidos foram comparados com resultados similares para destacar pontos em comum e pontos de discordância.
1.5 ESTRUTURA DA MONOGRAFIA
Na primeira parte, a presente monografia faz uma abordagem genérica dos fundamentos teóricos da doutrina de direitos humanos, sua evolução histórica até os dias atuais.
Na segunda parte relaciona direitos humanos e segurança pública, ligando a teoria à prática policial, trazendo considerações a respeito da instituição pesquisada, dos princípios dos Direitos Humanos e do poder de polícia, bem como do uso da força. Nesta parte, relaciona fundamentos e pressupostos dos direitos humanos e a atuação policial frente ao Estado Democrático de Direito. Destaca ainda a importância da instituição na proteção e promoção dos direitos humanos, trazendo o diagnóstico da pesquisa feita.
Na terceira parte trás as considerações finais, bem como as recomendações e sugestões sobre as possibilidades de implementação na corporação de um programa de direitos humanos voltado para a atividade policial militar, baseado nos resultados alcançados na pesquisa.
1.6 LIMITAÇÕES DA PESQUISA
No referente às limitações da presente pesquisa, vários itens foram observados e concorreram direta ou indiretamente para os objetivos pretendidos. O primeiro fato foi a pouca receptividade dos integrantes da corporação sobre a proposta da pesquisa. Os documentos da pesquisa, os questionários que eram entregues eram extraviados, não respondidos ou rasurados, de forma que poucos oficiais e praças colaboraram com esta pesquisa. Alegavam quase sempre a falta de tempo.
Um dos objetivos da pesquisa era ouvir o público da classe universitária do curso de Direito da UEA, entretanto, o tempo de elaboração deste trabalho monográfico coincidiu com o período de férias daquela instituição de ensino, de forma que ficou inviável essa parte do trabalho.
Outro fator que limitou a pesquisa de campo foi o fato de os moradores da Zona Leste de Manaus não estarem muito receptivos a responderem aos questionamentos ou mesmo serem entrevistados, alegando não se envolver nesse assunto, de forma que poucos foram os que concordaram em serem ouvidos, embora se dissesse para os mesmos que de forma alguma seriam identificados. O mesmo ocorrendo com os presos e detidos nas delegacias.
Assim, diante deste contexto, optou-se por um maior aprofundamento teórico do tema, cuja bibliografia é muito vasta e numerosa, observando e analisando a doutrina voltada para o tema em questão.
2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS
Direitos Humanos constituem-se na “proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometido pelos órgãos do Estado ou regras para se estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana” (Unesco).
2.1 OS FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS
A concepção de direitos humanos sofreu grande evolução no curso da história. Há mais de dois mil anos a doutrina do Cristianismo passa a professar a igualdade entre os homens, criando uma comunidade espiritual entre os povos, o dever de ajuda e respeito mútuo, bem como reconhecendo que todo homem é pessoa naturalmente detentora de direitos individuais inalienáveis.
Por volta dos séculos VIII e II a.C. despertou-se uma tímida idéia de igualdade humana, onde se enunciaram os princípios e estabeleceram-se diretrizes fundamentais de vida. Vale dizer que foi na Grécia, em Atenas, que a lei escrita tornou-se pela primeira vez o fundamento da sociedade política. Contudo, não se trata ainda de uma afirmação dos direitos inerentes à condição humana, mas sim do início do movimento para a instituição de limites ao acolhimento generalizado da idéia de que havia direitos comuns a todos os indivíduos.
Foi somente na Inglaterra, em fins do século XVII, graças a inúmeros filósofos, entre eles John Locke, é que se passou a reconhecer a existência de direitos humanos. No século XVIII, filósofos e juristas do Iluminismo, com base nas teorias do direito natural e do racionalismo, defenderam a idéia de que todo homem possui direitos naturais, anteriores e superiores ao próprio Estado.
A Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776, reconheceu esse fato.Também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional Francesa, em 26 de agosto de 1789, sob o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, proclamava em seus 17 artigos que todos os homens são iguais perante a lei, com direitos naturais de liberdade de pensamento, de expressão, de reunião e associação, de proteção contra a prisão arbitrária e de rebelar-se contra o arbítrio e a opressão. A essa primeira admissão de direitos políticos e civis somou-se, no século XIX, uma segunda, referente aos direitos econômicos, sociais e culturais, influenciada pelo pensamento socialista e impulsionada pelos movimentos revolucionários. Consagra-se o princípio de que todo homem é sujeito de direitos e obrigações.
Mas foi a partir da promulgação do Direito Canônico que a humanidade civilizada passa a se conduzir para a compreensão de que o homem não pode ser considerado objeto de propriedade. A escravidão de pessoas passa a ser abolida, regime degradante muito adotado na Antigüidade. Com o passar do tempo, cada povo foi adotando uma lei de acordo com a realidade específica, mas igualmente incorporando os direitos que foram sendo conquistas da humanidade como um todo, pois os direitos humanos universais e os princípios universais de direitos humanos são aqueles que podem ser aceitos por todas as culturas.
Já no século XX, face às terríveis violações dos direitos humanos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial e à conclusão de que a proteção destes direitos não poderia ficar restrita à esfera interna de cada Estado, a ONU, em 1948, descreveu o significado de direitos humanos com a Declaração Universal de Direitos Humanos, elenco de direitos que tem sido adotado com eficácia pela jurisprudência interna de alguns Estados, entre eles o Brasil, cuja Constituição promulgada em 1988 tem a Carta Universal como base de seus direitos e garantias fundamentais.
A partir da metade do século XX consolidou-se a concepção de Direitos Humanos em nível internacional. A partir de então se desenvolveu um processo de normatização sistemática que definiu os princípios gerais a serem adotados por todos os países interessados, institucionalizando mecanismos concretos de proteção dos direitos humanos, isto em nível mundial. Para Molani Caldas et al:
Enquanto o século XIX havia se caracterizado por ser o momento do reconhecimento constitucional, em cada Estado, dos direitos fundamentais, no século XX, principalmente após a segunda guerra mundial, houve uma progressiva incorporação dos direitos humanos no plano internacional (p.73).
A partir de então, paulatinamente verifica-se no mundo civilizado a plena aceitação dos direitos humanos, no plano nacional e internacional. Com relação a alguns princípios, porém, pode-se falar que existe um consenso de que os direitos humanos representam demandas individuais de participação nas decisões do governo e na riqueza nacional, sob a forma de acesso à educação básica livre e gratuita, à segurança, à saúde e à moradia condigna, e da prerrogativa de representar contra quaisquer pessoas ou instituições que limitem o exercício desses direitos.
A expressão "direitos humanos" assumiu o significado exato de direitos do homem, de acordo com a formulação, nas últimas décadas do século XVIII, a partir das revoluções francesa e americana. Direitos humanos é a designação genérica dos direitos que dizem respeito diretamente ao indivíduo, em decorrência de sua condição humana e em consonância com a lei natural.
A proliferação da política de direitos humanos em nível global teve como fator decisivo as atrocidades do nazismo cujos métodos de eliminação de judeus deixaram perplexos toda a humanidade – cerca de 5,9 milhões de judeus foram assassinados nos campos de concentração e extermínio alemães. A partir do final desse holocausto, surgiu no mundo um interesse latente por questões humanitárias. Segundo Fragoso “A carta da ONU, surgida ao término do conflito, em seu preâmbulo declara que os povos das Nações Unidas reafirmam sua fé nos direitos humanos, na dignidade e no valor da pessoa humana, nos direitos iguais de homens e mulheres” (p.120).
Como dito, a aceitação dos direitos humanos encontrou sua expressão mais clara na Carta das Nações Unidas, de 1945, e, sobretudo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, em que se consubstanciam todos os direitos políticos e civis tradicionalmente tutelados nas constituições democráticas e se reafirma a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana.
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)... que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado do Direito... (Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948).
Formada por 30 artigos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa um conjunto de aspirações proclamadas como ideal comum de todos os povos. Considera o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis como constitutivos do fundamento da liberdade, da justiça e da paz, fazendo-se essencial que os direitos do homem sejam protegidos em todos os níveis e sentidos.
Descreve, em seu corpo, um elenco de direitos subjetivos, relativamente à vida, à liberdade e à segurança individual. Direito à inviolabilidade da pessoa, vedadas a escravidão e a tortura; liberdade de palavra, de fé religiosa e de associação; inviolabilidade do lar e da correspondência; igualdade perante a lei, vedada qualquer discriminação; ninguém será culpado por ação ou omissão que, no momento, não constituam delito perante o Direito nacional ou o internacional, nem submetido à pena mais forte do que aquela que, no momento da prática do delito, era aplicável ao ato delituoso; direito à locomoção, à nacionalidade, à emigração, ao asilo; direito ao matrimônio e à constituição da família; direito à propriedade; direito a participar do governo e a ter acesso aos serviços públicos; direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade e livre desenvolvimento da personalidade; direito ao trabalho, em condições justas, direito à escolha do emprego e à proteção contra o desemprego, a doença, invalidez, viuvez e velhice; assistência especial à maternidade e à infância; direito à instrução e à livre participação na vida cultural da comunidade, no progresso científico e em seus benefícios.
Os direitos humanos foram concebidos como proposta de um sistema de vida integral que abarcasse o âmbito cultural, econômico, político e social, tanto em nível individual como coletivo, e aplicável a todos, sem qualquer discriminação. Exprimem um desejo de sobrevivência cada vez mais profundo à medida que cresce a ameaça.
Assim, enumeramos de maneira cronológica os instrumentos importantes dos direitos Humanos vistos no seu contexto histórico, como também suas características:
Quadro 1 – Instrumentos importantes
Ano | Documentos | Finalidade |
1215 |
Magna Carta do rei João Sem Terra | Feita para proteger os privilégios dos barões e os direitos dos homens livres. É considerado o documento básico das liberdades inglesas. |
1628 | Petition of Rights | Reconhecimento das liberdades nacionais. |
1679 | Hábeas Corpus Act | Para irregularidade de prisões. |
1689 | Bill of Rights | Restringiu o poder real. |
1701 |
Act of Settlement | Exigiu consentimento prévio do Parlamento Inglês para o Estado declarar guerras e impediu a destituição de magistrados pelo rei. |
1776 |
Declaração da Independência Americana | Afirmação dos direitos inalienáveis do ser humano e a proclamação de que os poderes dos governos derivam do consentimento dos governados. |
1789 |
Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão | Possui três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. Proclama os seguintes princípios: Isonomia, liberdade, propriedade, reserva legal, anterioridade da lei penal, presunção de inocência, liberdade religiosa, livre manifestação do pensamento. |
1919 |
Tratado de Versalhes | Direitos dos trabalhadores reconhecidos internacionalmente, refere-se às liberdades individuais |
1941 |
Doutrina das Quatro Liberdades | Franklin Roosevelt lança a proclamação das quatro liberdades: liberdade de expressão, liberdade de credo, liberdade da necessidade e liberdade do medo. |
1948 |
Declaração Universal dos direitos Humanos
| Arrola os direitos básicos e as liberdades fundamentais que pertencem a todos os seres humanos, sem distinção de raça, cor, sexo, idade, religião, opinião política, origem nacional ou social, ou qualquer outra. |
1948 | Declaração Americana dos Direitos do Homem | Pautou-se nos direitos civis, políticos, econômicos e culturais. |
Quadro 2 - Características dos Direitos Humanos
Inviolabilidade | Impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por ato das autoridades públicas, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e criminal. |
Imprescritibilidade | Não se perdem com o passar do tempo, pois se prendem à natureza imutável do ser humano. |
Irrenunciabilidade | Não se renunciam direitos fundamentais. Alguns podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite sejam renunciados. |
Inalienabilidade | Não há possibilidade de transferência, seja a título gratuito ou oneroso. ninguém pode abrir mão da própria natureza |
Universalidade | A abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos, independente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica |
Efetividade | A atuação do Poder Púbico deve ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstas, com mecanismos coercitivos; |
Indivisibilidade e Interdependência | Não se pode defender apenas os direitos individuais, excluindo os sociais, e vice-versa, assim como não se pode defender apenas um ou alguns dos direitos em detrimento dos outros. |
Complementariedade | Os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade do legislador. |
3. CLASSIFICAÇÃO E GERAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS
O homem se apresenta como um ser material, biológico e psíquico. Ninguém pode deformar fisicamente o espírito, mas pode fazê-lo à camada orgânica do homem, à sua forma material, mediante a tortura e maus tratos. Qualquer agressão a qualquer uma das camadas que compõe o ser importa numa lesão à dignidade humana. Assim, sinteticamente, a classificação dos direitos do homem abrange:
1. Os direitos e liberdades individuais, de caráter político e civil (liberdade de expressão, de consciência, de movimento, de se reunir e se associar pacificamente);
2. Liberdades e direitos sociais e econômicos (direito ao trabalho, a um padrão de vida adequado, à educação e à participação na vida cultural);
Os direitos da pessoa humana apresentam-se como direitos fundamentais e tradicionalmente se subdivide em direitos de primeira, segunda, terceira e quarta geração. A primeira geração de direitos caracteriza-se por ter como titular o indivíduo e sua liberdade. São direitos opostos aos desmandos do Estado. Valoriza o homem enquanto detentor de garantias individuais tuteladas na maior parte das constituições modernas.
A segunda geração de direitos caracteriza-se pelo seu aspecto econômico, social e cultural que dominaram o século XX. Nasceram juntamente com o princípio de igualdade. A terceira geração versa sobre os chamados direitos de fraternidade, ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, enfim ao patrimônio comum da humanidade.
A quarta geração tem por característica a democracia, a informação, e ao pluralismo ideológico. É chamado também direito de solidariedade. Em suma, são direitos fundamentais de primeira geração os direitos políticos e individuais, os direitos de segunda geração são eminentemente sociais, de terceira geração são de todos os povos e os de quarta geração são para gerações futuras.
Assim, fruto de uma longa e lenta evolução, hoje muito se comenta sobre os direitos humanos, numa era histórica em que os direitos individuais são cantados em prosa e verso por todos os lugares do planeta. Fala-se inclusive numa doutrina de proteção a tais direitos em níveis globais, onde o sujeito deixa de ser um mero nacional para se tornar um cidadão mundial, detentor de prerrogativas e sujeições.
Certo é que todas as pessoas têm direitos inerentes à sua condição de humano e isso ocorre em todas as partes do mundo. Evidente que devido às diferenças geográficas, econômicas e culturais há lugares em que estes direitos são mais respeitados enquanto em outros cantos quase não existe nenhum respeito. Ocorre que hoje ninguém pode negar a existência de meios que visam a garantir e a proteger os direitos fundamentais do homem, e isto é verificável em constituições de todo o mundo, inclusive na brasileira, que já no seu artigo primeiro diz que é fundamento do Estado “a proteção da dignidade da pessoa humana”. E Bobbio complementa:
(...) O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das constituições democráticas modernas (...). Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhe são reconhecidos alguns direitos fundamentais (1992, p.7).
Para Amaral :
Os direitos humanos são os direitos subjetivos mais caros aos homens porque mais identificados com seu status dignitatis (=nível/grau de dignidade)-na escada da dignidade (respeito devido aos seres vivos) o ser humano está no topo. São, assim, inerentes a todos os seres humanos e por toda a vida humana (com projeção para além da vida), por isso direitos congênitos, inatos. São direitos que pertencem ao homem já pelo simples fato de ele ser humano. (2004,p. 53).
E depois de tanto comentar sobre a importância dos direitos fundamentais da pessoa humana, eis que surge uma grande indagação: por qual motivo fala-se tanto em direitos humanos? A resposta é dada por Dallari :
Simplesmente porque todas as pessoas têm algumas necessidades fundamentais que precisam ser atendidas para que elas possam sobreviver e para que mantenham sua dignidade, além de que todas as pessoas são iguais por natureza e todas valem a mesma coisa. (2004,p.7).
Os direitos mínimos ou fundamentais de qualquer pessoa humana são tutelados nos mais diversos tipos de legislações, sejam elas nacionais, ou mesmo globais. São direitos que independem do local onde nasceu o cidadão, de seu credo, raça, cor, sexo, grau de educação ou condição social, posto que são direitos inatos, universais e indivisíveis devendo ser assegurados a qualquer pessoa humana, devendo ser observado sob o prisma do art. 5º, da Declaração Mundial de Direitos Humanos de 1995 que reza: todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Amaral considera os direitos humanos um meio de aferir graus de civilização dos países:
Com efeito, hoje se pode bem aferir o índice de civilização de cada sistema jurídico pelo grau de respeito que dispensa aos direitos humanos, independente de outras considerações, até porque, atualmente, esse reconhecimento é parte primordial daquilo que se tem denominado de ius cogens (direitos imperativos, absolutos) universal (direitos garantidos a todos) já imposto pelo direito internacional (2003, p..55).
Como dito, os direitos humanos são vistos na atualidade como um tema de alcance global e regional haja vista que possui os mais diversos instrumentos de proteção e reconhecimento de tais direitos. Exige-se cada vez mais dos Estados a tutela dos compromissos assumidos nos mais diversos instrumentos jurídicos do qual são signatários. A mundialização dos direitos humanos é um movimento ainda recente na história, mas que já produz muitos resultados positivos.
Lindgren ratifica esta mundialização:
Com lugar assegurado entre os temas globais, de interesse para toda a humanidade, cuja promoção e proteção constituem “objetivo prioritário das Nações Unidas” e “preocupação legítima da comunidade internacional” (parágrafo 1º do preâmbulo e 2º da primeira parte da Declaração de Viena), os direitos humanos não são mais matéria da exclusiva competência das jurisdições nacionais. Sua observância é exigência universal, consensualmente acordada pelos Estados na conferência mundial, e ainda mais cogente para países como o Brasil, que aderiram às grandes convenções existentes nessa esfera ( 2003, p. 41).
Existem pelo menos dois grandes sistemas de proteção e reconhecimento dos direitos humanos. O primeiro é o sistema de alcance mundial ou global, capitaneada pelas Nações Unidas cujo órgão máximo, a Comissão de Direitos Humanos, dita e fiscaliza as políticas de direitos humanos em níveis globais. O segundo grande sistema é mais regionalizado e possui por premissa o espaço geográfico reduzido, onde há uma maior homogeneidade e organização político-econômica similar como fatores a facilitar o estabelecimento de normas e mecanismos de proteção mais diretos nestes Estados.
Assim, interagindo com o sistema global, os sistemas regionais, no caso se sobressaem o europeu e o interamericano, são complementares dando maior eficiência ao sistema das Nações Unidas. “Os sistemas regionais e o sistema global podem e devem atuar simultaneamente para reforçar o controle internacional sobre violações de direitos humanos. E isto é válido precisamente em função das distintas naturezas de cada um” (LINDGREN, 2003, p.75).
Em 2003, em visita ao Brasil, a relatora especial sobre execuções sumárias da ONU, Asma Jahangir, declarou acreditar na existência de grupos de extermínio formados por policiais brasileiros. Tal visita significou uma alavanca para a luta contra as violações aos Direitos Humanos.
Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais são frutos de um processo evolutivo lento e demorado de luta por tais direitos, que culminou na Declaração Universal dos Direitos Humanos após as atrocidades da segunda guerra mundial. Embora nestes últimos dois séculos existam fartos documentos relativos aos direitos do homem, porém foi com a declaração de São Francisco em 1945 que inspirou a elaboração de sistemas de proteção em níveis mundiais e regionais ou continentais, com a adoção de mecanismos como os tribunais internacionais que influenciam nas políticas internas dos países no referente às políticas de direitos humanos.
Piovesan; Gomes complementa:
É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a segunda guerra mundial significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução. (200, p.17).
Hoje, é farta a literatura que confirma o fato de que todos os seres humanos são titulares de direitos e garantias fundamentais como o direito à segurança, à vida, à liberdade, a direitos sociais, políticos e econômicos que garantam o mínimo de sua dignidade humana, já que cada sujeito humano traz dentro de si toda a humanidade e desrespeitar tais garantias mínimas é rebaixar e degradar toda a raça humana.
Daí a importância das organizações policiais militares implementarem em seus cursos de capacitação e aperfeiçoamento profissional, temas referentes aos direitos humanos, já que historicamente estas carregam a mácula de grande violadora dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Entretanto, “apesar dos avanços percebidos na relação polícia-comunidade, vários policiais e até organizações ainda não internalizaram o que significa e representa os direitos humanos para toda a humanidade” (MANOEL 2004, p. 10).
3.1 A natureza dos direitos humanos
O homem, como pessoa, detém direitos justamente por ser senhor de si e dos próprios atos, e detém, igualmente, a liberdade natural. Prega o artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Esta liberdade a que se refere o artigo advém do Direito Natural, evoluindo do próprio direito à vida. Esta sucessão de direitos fundamental é a base de um princípio para a vida harmônica de todos os seres humanos que é justamente a dignidade da pessoa, o que corresponde ao direito de toda pessoa humana em ser respeitada, tanto a sua essência quanto os seus direitos.
Do direito natural decorrem os direitos do homem à existência, à liberdade pessoal e à procura da perfeição da vida moral. Além disso, pressupõe o direito de escolher o próprio destino pessoal, pelo simples fato de ser livre. O direito natural é a “célula mater” dos chamados direitos fundamentais e, por fim, dos direitos humanos. A pessoa humana é sujeito de direitos e justamente por isso é uma pessoa. Há coisas que pertencem ao homem por direito, simplesmente porque é homem.
O Humanismo Integral nos diz que a doutrina dos direitos da pessoa humana repousa sobre a idéia da lei natural. É dela que decorrem os princípios primários de fazer o bem e evitar o mal, de maneira necessária e pelo simples fato de que o homem é homem. Desta natureza decorrem direitos que protegem a dignidade pessoal do ser e a transformam num sujeito de direitos, dotado de essência e existência, inteligência e espiritualidade. Estes direitos são básicos, pois sem seu respeito seriam impossíveis os demais, e dizem respeito ao homem como pessoa, como membro da sociedade familiar e da sociedade política. Nesse sentido, um dos direitos fundamentais da pessoa humana, e de todas as sociedades, é sem dúvida a segurança individual e coletiva, um dos pilares da vivencia em comunidade.
1. DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA
Direitos Humanos com Segurança Pública e Segurança Pública como um Direito Humano. Essa relação, muito sintética, de certa forma, expressa um paradigma novo da democracia contemporânea brasileira. Os operadores diretos de segurança pública, em especial os policiais, são fortemente chamados à assunção de sua missão e ao cumprimento de suas tarefas sem descuidar da consciência moral que inspira as leis democráticas e sem esquecer que devem ser protagonistas da promoção de direitos, muito além de meros cumpridores de ordens e executores de disposições legais.
A segurança pública é essencial e um importante direito fundamental da pessoa humana. Assim, logo se vê uma grande interação e interdependência entre segurança pública e direitos humanos, na medida em que é um direito elementar de qualquer pessoa humana, crucial para o desenvolvimento social e pessoal. É tão importante que é tutelado nos mais diversos instrumentos jurídicos de âmbito interno e externo. Não é possível haver uma vida digna se a pessoa humana não desfruta do acesso à segurança individual e coletiva, essencial para que os demais direitos possam ser realmente efetivados. Onde não há o respeito aos direitos humanos, não é possível haver segurança. Complementa Amaral:
Convém observar que a questão da segurança pessoal é amplamente regrada em diversos tratados internacionais sobre direitos humanos, como no artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como no artigo 1º e 28 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, artigo 9º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e artigo 7º, I, da Convenção Americana de Direitos Humanos. Pacto de San Jose da Costa Rica (2003, p.56).
Diante da vastidão de valores que os direitos humanos tutelam hoje se torna imperativo esclarecer o fato de que direitos humanos não é nem “defesa de bandido” nem somente defesa das vítimas, e muito menos uma mera retórica de internacionalistas, posto que é algo muito mais amplo e nobre, já que versa sobre a proteção da dignidade humana e esta se conquista com o simples fato de ser humano. Mesmo que o sujeito seja o pior marginal, ainda assim possui direitos e garantias. “Explica-se a aparente concentração desses direitos nas pessoas de bandidos porque esses são mais alvos da fúria policial e da truculência de desprezadores dos valores humanos” (AMARAL, 2003, p.56).
Acontece que, após a carta cidadã promulgada em 1988, os direitos e garantias individuais foram sobremodo ampliados, o que sugere muitas críticas por parte dos maus policiais, argumentando que a instituição ficou de mãos atadas diante de tantos direitos das pessoas, como se os procedimentos arbitrários adotados antes do advento da constituição fossem verdadeiramente válidos e tivessem solucionado o problema da criminalidade no país. “Parece ser unânime que os direitos humanos devessem favorecer apenas as pessoas de bem, aos cidadãos inidôneos, e, dentro desse raciocínio, seriam excluídos dessa proteção os criminosos, que, para efeito dessas garantias, não poderiam ser considerados cidadãos” (SILVA, 2003, p. 47).
Nas organizações sociais autoritárias quase sempre não se valorizam os direitos da pessoa humana. Neste tipo de sociedade, o uso exagerado da força não funciona, ainda que o aparelho repressor estatal funcione a todo vapor com ênfase no policiamento tipo intimidador de características eminentemente repressivas. Em nosso país, hoje não se justificam mais o emprego de uma organização policial justiceira cujas características sejam eminentemente repressivas, já que o momento exige mais tratos e respeito a pessoa humana, ou seja, o cidadão é um cliente que deseja um serviço produzido com qualidade. “Em sociedades acentuadamente democráticas, em que os direitos e garantias individuais sejam tradicionalmente exercitados, as soluções pela força e pela ação violenta da polícia não prosperam” (ibidem, p.101).
E continua o autor:
País de tradição autoritária, como soam ser os países latino-americanos, onde os direitos de cidadania sempre estiveram restritos a uma faixa muito reduzida da população, o Brasil se vê diante de um impasse no momento em que, fruto do acesso a informação proporcionado pelos meios de comunicação social e pelo aumento dos contingentes populacionais matriculados nas escolas e universidades nas ultimas décadas, as pessoas começam a reivindicar direitos e a não aceitar as práticas autoritárias da polícia. Pretendendo-se uma sociedade democrática, o Brasil não consegue sair do discurso, pois a principal evidencia da democracia é a garantia dos direitos civis, e a principal evidencia dessa garantia é o respeito da polícia aos direitos individuais, o que implica, por parte dos policiais, menos uso da forca (polícia ostensiva) e mais uso da inteligência (investigação criminal) (ibidem, p.102).
Diante dos argumentos apresentados, fica evidente que a instituição policial militar tem por fim a preservação da ordem pública com embasamento nos preceitos éticos, morais e legais, entretanto, em alguns momentos a corporação é utilizada como massa de manobra por alguns espíritos inescrupulosos que transitam no poder, esquecendo-se as milícias que a nobre missão tem por fundamento as necessidades da população e não visa a atender caprichos pessoais de qualquer particular. Sobre isto, já em 1789, durante a Revolução Francesa, em sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o seu artigo doze reza que “a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma forca pública: esta é, pois, instituída em proveito de todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem for confiada”. Hoje, segundo Amaral (2003, p. 61), “armas e pancadas não são a essência do trabalho policial, mas sim a lei e o direito”.
E SILVA, seguindo essa mesma linha de raciocínio, completa:
As polícias de hoje, destarte, deve ter um papel diferente do de somente fazer cumprir as leis e manter a ordem na base da força. Ela deve ser encarada como um serviço público essencial à disposição da população. Esta concepção é diametralmente oposta à concepção tradicional, pois que muda o destinatário da ação da polícia, fazendo prevalecer o conceito de proteção sobre o de repressão (...). Na visão tradicional, em que o destinatário dos serviços policiais são, alem de criminosos de fato, “os criminosos indeterminados”, a ação repressiva acaba sendo exercida indistintamente contra criminosos e não criminosos, este últimos, na maioria das vezes cidadãos pacatos rotulados de “criminosos potenciais” pela polícia com base em estereótipos. (2003, p.139)
Sobre isso, em nossa pesquisa de campo, chegamos a presenciar o seguinte fato: “-Chefe, o Sub não pára de levar os cheira-cola para o PPO; é por isso que tá cheio de processo” – relata uma praça da Polícia Militar da capital, em diálogo (informação oral).
Observa-se, deste modo, que hoje as corporações militares possuem um importante papel constitucional de preservação da ordem e defesa dos cidadãos. A lógica atual se diferencia bastante da lógica do período repressivo, pois modernamente “a polícia defende direitos e logicamente direitos humanos. Por que não? O policial foi instituído pela sociedade para ser o defensor número um dos direitos humanos” (MANOEL, 2004, p. 9). Sobre essa forma de proceder da polícia moderna, assim se expressa Amaral:
A aplicação da lei, a segurança pública, enfim, a polícia, não é uma profissão em que se possa utilizar soluções padronizadas para problemas padronizados que ocorrem em intervalos variados. Não. Trata-se isso sim, mais da arte de compreender o espírito e a forma da lei, assim como as circunstancias únicas de um determinado problema concreto a ser resolvido. Espera-se sempre que os encarregados da aplicação da lei tenham aptidão de distinguir entre inúmeras tonalidades de cinza, em vez de apenas fazer a distinção entre preto e branco, certo e errado. (2003, p. 61)
Dessa forma, após observar argumentos dos diversos autores, será verídico que nos dias correntes as organizações policiais-militares tratam de fato o cidadão comum, destinatário de seus serviços, conforme as exigências da sociedade, ou apenas usa de um discurso retórico procurando justificar aquilo que não faz?
A nova polícia precisa investir em treinamento e qualificação técnica-profissional, sob pena de ser superada pelo movimento da história. Nesse sentido, os currículos dos cursos de formação policial precisam estar coadunados com os fundamentos dos direitos humanos. Enquanto agente de segurança pública, o policial militar deve praticar os ensinamentos jurídicos e operacionais sempre embasados na doutrina e na lei. Nesse sentido, existe uma intrínseca relação entre a atividade fim da polícia ostensiva e os princípios e pressupostos dos direitos humanos, conforme cita Manoel:
Direitos humanos e a atividade policial são interdependentes e indissociáveis. A linha de conduta da polícia moderna, daquela que de fato quer ser considerada cidadã, necessariamente passa pela atualização de mentalidade e conceitos estabelecidos pelos vários tratados, doutrinas e princípios já consagrados pelos direitos humanos. (2004, p.11)
4.1 O Princípio da Dignidade Humana e Violação dos Direitos Humanos
“Respeitar a dignidade da pessoa humana”, um dos preceitos da ética policial-militar. (EPMAM, Art. 27, III,).
A vida humana ganha sua riqueza se é construída e tomando como referência o princípio da dignidade. Segundo esse princípio, toda e qualquer pessoa é digna e merecedora do respeito de seus semelhantes e tem direito a boas condições de vida e oportunidades de realizar seus projetos. Características particulares como sexo, idade, etnia, religião, classe social, opção política e ideológica, dentre outras, não aumentam nem diminuem a dignidade de uma pessoa. Entretanto, na riqueza decorrente da diversidade existem preconceitos e discriminação, o que resulta freqüentemente em conflitos e violências.
Na Constituição Federal, no artigo 3º, lê-se que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre outros: "construir uma sociedade livre, justa e solidária"; “erradicar a pobreza e a marginalizarão e reduzir as desigualdades sociais e regionais"; “promover o bem de todos, sem preconceitos...". Já no título II, artigo 5º, mais itens esclarecem as bases morais escolhidas pela sociedade brasileira, "ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante"; "é inviolável a liberdade de consciência e de crença"; assim como "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas".
A violação dos Direitos Humanos atinge muito mais aqueles que são excluídos socialmente ou pertencem a minorias étnicas, religiosas ou sexuais, embora em tese, todos podem ter os seus direitos fundamentais violados. O artigo 5º da constituição Brasileira garante os Direitos Fundamentais do Homem, à igualdade, à segurança e à propriedade. Na sociedade em geral, mesmo dentro da Instituição Policial, engrossa-se a idéia de que a política dos direitos humanos consiste em convicções inconvenientes que acabam produzindo péssimos resultados, pois atam as mãos dos policiais, dando largas aos marginais.
Dados atuais auferidos, na íntegra, do Almanaque Abril nos mostram a situação real do que está acontecendo no nosso país no que concerne ao assunto Direitos Humanos e Polícia. Vejamos:
O Primeiro Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) em 1999, mostra que as execuções sumárias, a tortura e o uso excessivo da força por parte dos policiais no país ainda persistem. Além da impunidade, contribuem para esse quadro os baixos salários e a falta de condições adequadas de trabalho e de perspectiva profissional. Esses fatores levam grande número de policiais militares e civis a trabalhar nos horários de folga como vigilantes e guardas particulares. Exercer um segundo emprego é proibido aos policiais, mas a prática é tolerada por oficiais e delegados, que muitas vezes são empregados, sócios ou donos de empresas de segurança privada. Essa situação aumenta o desgaste profissional, o estresse e o risco de corrupção e de violência em ações envolvendo policiais (2004, p.237).
Entre as várias violações de Direitos Humanos a que estamos sujeitos diariamente, a violência física é uma das que, pela natureza do fato, produz um enorme impacto. É preocupante, já que se observa o número alarmante de vítimas que ela tem produzido de modo progressivo e quase que incontrolável. O Brasil registra hoje um dos maiores índices de homicídios do mundo.
A luta pelos direitos humanos está presente no PROCEAP - Promotoria do Controle Externo da Atividade Policial -, as quais, respeitadas as especificidade de atuação, lidam com a questão no seu cotidiano, seja pelo atendimento direto aos cidadãos, seja pela articulação política com personalidades e órgãos, governamentais ou não, o que torna comum a todas o tratamento prioritário do tema.
E quando se aborda este tema, pode-se sempre ver surgir uma questão, qual seja, por que dar tanta importância aos direitos dos delinqüentes quando estes sistematicamente violam os direitos humanos? A resposta é muito simples, pois mesmo transgredindo as normas o sujeito não deixa de ser humano, portanto, devem ter seus demais direitos respeitados, não afetados pelas sanções impostas a ele.
Portanto, os Direitos Humanos não são apenas sanções morais e sem eficácia, mais direito positivo, normas jurídicas cuja abrangência, é constitucional e supra-constitucional, uma vez que o parágrafo 2º do artigo 5º da nossa Carta Magna estimula a incorporação de instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos. Além de que, o Art. 4º de nossa Carta Maior diz que a República Federativa do Brasil reger-se-á nas suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios da prevalência dos direitos humanos.
2. CONHECENDO A INSTITUIÇÃO PESQUISADA
5.1 Histórico da Instituição Policial Militar
A necessidade da Polícia leva-nos a lembrar das permanentes necessidades da sociedade humana, dentre as quais está a segurança, ordem e sossego. Ao nos reportarmos à história antiga, encontramos a atividade policial com raízes nos primeiros conglomerados humanos. Na Grécia antiga, entendia-se que um estado bem policiado era aquele em que a lei, de modo geral, assegurava a prosperidade e o equilíbrio social. Vemos ainda que em Roma o policiamento era local, sem interferência direta do Chefe do Estado, e era competência direta dos edis os quais tinham total autonomia no exercício de suas funções, atingindo características semelhantes à estrutura e função dos organismos policiais de nossa época.
Normalmente, as polícias militares sempre realizaram tarefas policiais, quaisquer que tenham sido as denominações da instituição ou da atividade desempenhada. A predominância ou a priorização da missão principal, é evidente, sempre se enquadrou no ambiente conjuntural. No Brasil – Colônia, onde predominou a defesa dos interesses da Coroa e de seus representantes, a primeira organização militar que se tem notícia foi criada em 1570 e era constituída das “Companhias de Ordenanças” e delas surgiu em 1709 as “Tropas Pagas”, que deram origem em 1719 às “Companhias de Dragões”, as quais tinham nos seus quadros profissionais remunerados pelos seus serviços. Estas eram incumbidas do patrulhamento, rondas, condução de presos, combate às desordens, e eram subordinadas aos Governadores da Província.
Com a vinda da família real para o Brasil, D. João VI criou a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia em 13 de maio de 1809. Esta foi a origem oficial da Polícia no Brasil. Já no Período Regencial foram criados os “Corpos Municipais de Voluntários”, para as atividades de policiamento das cidades e estradas. As atuais Polícias Militares tiveram, então, suas origens nestes Corpos que, criados em 1831, eram encarregados do policiamento nas Províncias e mantidos pelo governo respectivo. É de ressaltar que a partir de 1840 os Corpos Permanentes passaram a ser denominados Corpos Policiais, sendo transformados em “Brigadas Policiais” em 1873.
No Brasil-Império, inicia-se a divisão das vertentes militar-combatente (para defender a Pátria) e o militar-policial (para defender o indivíduo e a comunidade), com o Corpo de Guardas Municipais Permanentes. Já no Brasil-República, com a Brigada Policial, que também passaram a ser chamadas de “Forças Públicas” se configuram forças federais sob as ordens do Presidente da República, e forças estaduais, sob as ordens dos então Presidentes dos Estados. E, finalmente na Constituição de 1934 e regulamentação de seu artigo 167 dada pela Lei 192 de 17 de janeiro de 1936, a denominação passou a ser de “Polícia Militar”.
5.2 As Origens da Polícia Moderna
A polícia surge para manter a ordem. E a forma como se dá a manutenção da ordem pela polícia deixa marcas profundas na sua interação com os diferentes grupos sociais. A atuação policial fez e faz emergir percepções sociais que não contribuem para a ampla participação na segurança pública, vez que a coerção indiscriminada e o uso ilegítimo que a polícia faz da força estão fortemente presentes na vida cotidiana e no imaginário coletivo. Por isso, para estudar a polícia, é fundamental que se reconheça sua diversidade histórica no mundo.
Em sua pesquisa Padrões de policiamento, realizada em sete países, Bayle estabelece um conceito de polícia ampliado, que permite incorporar historicamente uma variedade de instituições e pessoas que tiveram legitimidade para utilizar a força na sociedade até a instituição da polícia pública.
(...) pessoas autorizadas por um grupo para regular as relações interpessoais dentro deste grupo através da aplicação de força física. Esta definição possui três partes essenciais: força física, uso interno e autorização coletiva.(...) A competência exclusiva da polícia é o uso da força física, real ou por ameaça, para afetar o comportamento. A polícia se distingue, não pelo uso real da força, mas por possuir autorização para usá-la. (...) A estipulação do uso da força é essencial para excluir exércitos. (...) Para reiterar, força policial é autorizada por um grupo social a aplicar a força física dentro desse grupo. Sem esses elementos, a polícia não existe. (2001, p.20).
Para Bobbio a polícia pública é “uma função do Estado que se concretiza numa instituição de administração positiva e visa colocar em ação as limitações que a lei impõe à liberdade dos indivíduos e grupos para a salvaguarda e manutenção da ordem pública”(1998, p.944). Essa delimitação mais restrita do conceito de polícia importa, por exemplo, para a identificação do tipo de interesses aos quais ela pode servir, que podem ser os de alguns grupos particulares ou os interesses comuns estabelecidos como públicos.
A polícia pública, servindo interesses públicos, obriga-se a zelar pela lei. Por sua vez, a maneira pela qual a polícia põe em ação as limitações que a lei determina é especialmente importante na construção da percepção e das relações entre a Polícia Militar e os diversos grupos sociais. A evolução da polícia no trato com a lei não representa uma linha histórica direta e contínua. A trajetória da polícia no Brasil, por exemplo, oscila entre o esforço de agir de modo compatível com o respeito à lei e o desempenho dentro de leis nem sempre democráticas. No Brasil e em outros lugares, a função policial, como hoje é entendida, nem sempre existiu, “ela é mais um produto de rupturas do que a conseqüência de um desenvolvimento que teria existido em germe desde as origens” (MONET, 2001, p.31).
Para Monet e também Schwartz & Miller apud Bayle, a industrialização, a urbanização e a tecnologia trazidas pela modernidade foram características básicas para a implementação de um policiamento público. Bayle, entretanto, de modo perspicaz e convincente, argumenta em direção oposta a esses autores, afirmando que “o policiamento público existiu em sociedades tão diferentes quanto a Síria antiga, a Roma clássica, a França absolutista, a Grã-Bretanha industrial, a Rússia feudal e a América contemporânea” (2001, p:46). A criação das organizações policiais foi simultânea à institucionalização do Estado e, pois, ao enraizamento desta na vida diária. Segundo Muniz , tratou-se de empreendimento que se obrigou a incluir também as elites, em especial pelo obstáculo constituído pelo uso exclusivo e privado que faziam da força.
Seguindo esse mesmo raciocínio, Souza revela que o uso da força configura-se como um mal necessário para regrar e regular a convivência dos homens em sociedade:
É um grande desafio definir e implementar regras que garantam a convivência pacífica entre os homens, a regulação de conflitos e que assegurem a imposição de um modelo de ordem. Os instrumentos de controle dos comportamentos desviantes e dos transgressores da ordem vigente nunca foram dissociados do uso da coerção e do emprego da força física e têm sido ineficazes em atingir o objetivo de diminuir a violência e criar as condições para instauração e permanência da paz. (1999, p.18).
Numa grande parte da Europa, a racionalização da produção agrícola marca o século XIX e inicia a expulsão e revolta dos aldeãos, que, desenraizados de suas terras, seguem para as cidades. De “classe laboriosa” passam a “classe perigosa”, uma vez que não conseguem trabalho ou são mal remunerados. Com uma violência variável, o recurso à força e à coerção, portanto, ao exército ou à polícia, mas preferencialmente à segunda, parece imprescindível para “civilizar”, isto é, socializar esses novos bárbaros. Sobre estes fatores, Monet complementa:
Durante séculos, a luta contra os distúrbios políticos e sociais é, na Europa, confiada principalmente ao exército. Mas, pouco a pouco, no decorrer do século XIX, os responsáveis militares se insurgem contra o emprego de suas unidades na manutenção da ordem urbana (...) Em caso de distúrbios coletivos, voluntários pouco organizados como milícias intervêm amiúde, fora do exército para manter a calma. Entusiastas, mas insuficientemente treinadas e equipadas, pública mais do que para resolvê-los.(...)sem legitimidade, essas milícias contribuem para exacerbar os problemas de ordem Premidos entre exércitos cada vez mais poderosos e milícias ineficazes ou pouco seguras, os Estados europeus escolhem reforçar a especialização policial no domínio do controle de multidões (2001, p.66).
No Brasil a especialização policial concentrou-se inicialmente no controle de escravos. Porém, a abolição da escravatura trouxe um sério complicador para a polícia. A identificação étnica dos fora-da-lei necessitou ser revisada, principalmente, com a chegada cada vez maior de imigrantes, embora os afro descendentes continuem a ser até hoje um grupo fortemente discriminado, em geral e, em particular, pela polícia.
Mas é na Inglaterra, no início do séc. XIX, num contexto de amplas transformações, que surge o conceito de uma organização policial moderna, estatal e pública, em oposição ao controle e subordinação política da polícia, seja por parte do poder executivo, seja por parte de líderes locais. “A criação da polícia significou, nesse sentido, o monopólio dos instrumentos de violência pelo Estado na imposição de um modelo de ordem sob lei” (SOUZA, 1999, p.21).
Sob esse aspecto, a força policial busca no modelo quase militar de organização, caracterizado pela ênfase em elementos como “o profissionalismo, o formalismo, a disciplina e a hierarquia de autoridade e comando” (PAIXÃO, 1995, p.21), o referencial para legitimar o caráter neutro e profissional da atividade. Assim, a fim de atingir o status de serviço público, passaram os policiais a executar de forma regular o papel de “agentes impessoais do Estado” (REINER, 1975, p.78), orientados por princípios racionais e legais no cumprimento de suas atribuições.
Para o primeiro chefe de polícia, Robert Peel, a polícia tinha o papel de conter violência criminosa que assolava a Inglaterra no início do séc. XIX. O desempenho desse papel disciplinador se daria ao educar a sociedade dentro dos princípios normativos da nova ordem vigente. Segundo Paixão:
O papel da polícia era levar às classes populares os valores civilizados da elite: nada de brigas, nada de violência, cobiça, vadiagem e bebedeira. A polícia deveria complementar, no espaço público da rua, o esforço das escolas, igrejas e fábricas em “colocar a casa do pobre em ordem. (1991, p.39).
Essa prática policial, contudo, coloca em evidência a natureza do controle do Estado pela implementação autoritária de padrões de convivência e resolução de conflitos a partir da visão da classe dominante para as classes dominadas. No Brasil, a opção foi a implantação de um modelo quase militar de polícia, que resultou no distanciamento da polícia em relação às classes populares, intensificando a desconfiança e resistência da periferia social à organização policial. Paixão relata a posição de necessidade de uma instituição com força coercitiva, persuasiva e coativa para regular as massas e manter o mínimo de ordem e tranqüilidade pública:
Do ponto de vista da análise sociológica, a polícia é um dos aparelhos repressivos do Estado, pela qual este instrumentaliza a regulação de comportamentos através do uso da violência legítima: encontra-se, no âmbito da legitimidade, a diferença entre a ordem emitida por um policial e por um bandido armado. A polícia cuida, portanto, para vigiar a implementação, pela sociedade, de normas públicas, explícitas e obrigatórias que descrevem modos “civilizados” de existência e de resolução de conflitos. A presença do policial relata a vigência dessa ordem normativa no espaço público e o porte de arma comunica a disposição, legalmente justificada, de imposição violenta da ordem face a resistência e recalcitrâncias de cidadãos, armados ou não. A criação da moderna polícia burocratizada representou um esforço de construção institucional no sentido, por um lado, de neutralizar a possibilidade de uso privado do instrumento público de coerção de comportamentos e, por outro, de orientar a ação instrumental da polícia por normas formais explícitas que especificam e restringem o uso da violência na imposição da ordem. (1995, p.6).
Nesta perspectiva, o modelo de ordem sob lei, ao tornar os homens iguais em liberdades e direitos, evidenciou, por um lado, o caráter punitivo das sociedades democráticas que, ao incorporar a vontade da maioria soberana, implica a intolerância e intensificação do controle coercitivo sobre comportamento desviante das minorias Por outro lado, significou a realização de um elemento intrínseco à noção de cidadania, ou seja, a restrição à arbitrariedade policial na imposição da ordem.
(...) “ordem” implica conformidade a padrões absolutos de moralidade, por outro; “lei” significa limites racionais à imposição de ordem. Esse dilema põe em questão qual definição de ordem a polícia deve seguir, e o problema enfrentado pelos policiais nas sociedades democráticas em fazer cumprir a lei, face à heterogeneidade e pluralidade de padrões morais que concorrem na definição do que é permitido e proibido”. (PAIXÃO apud SOUZA, 1999,p.23).
O desafio da discricionariedade na aplicação da lei para a polícia militar no Brasil encontra-se principalmente em conseguir superar o preconceito histórico quanto às classes perigosas, que, por uma ironia da alarmante desigualdade social brasileira, faz com que essas sejam os públicos que mais demandam a atuação policial e mais enfrentam os abusos de autoridade. Contudo, parte significativa dessas populações ainda confia na polícia militar. Conforme diz um morador do bairro do Coroado: “Confio na Polícia Militar. É a única coisa que temos para nos proteger”
5.3 Histórico da Polícia Militar do Estado do Amazonas
Dispõe a norma constitucional brasileira de 1988:
Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 5º. - Às polícias militares cabem a policia ostensiva e a preservação da ordem pública; (...)
§ 6º. - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
A polícia ostensiva é uma expressão que foi adotada para estabelecer a exclusividade constitucional e para marcar a expansão da competência policial das polícias militares, além do policiamento ostensivo. O adjetivo ostensivo refere-se à dissuasão, característica do policial fardado e armado, reforçada pelo aparato militar utilizado, que evoca o poder de uma Corporação unificada pela hierarquia e disciplina. Quando duplamente menciona a preservação da ordem pública fica clara a preferência do constituinte pela constância da preservação ostensiva à eventualidade da ação repressiva.
Tanto a Constituição Federal quanto a Estadual reservam à Polícia Militar um papel relevante na Segurança Pública, caracterizada pelo exercício do poder de polícia, tendo na legislação específica, a definição de sua missão síntese, destacando-se: assegurar o cumprimento da lei; a preservação da ordem e o exercício dos poderes constituídos. Para cumprir sua missão, a polícia militar executa com exclusividade, o policiamento ostensivo. Como polícia ostensiva preventiva, exerce as seguintes ações de policiamento:
1- ostensivo geral, urbano e rural;
3- florestal e de mananciais e de preservação ambiental;
4- guarda das sedes dos poderes estaduais;
5- segurança externa dos estabelecimentos penais do Estado;
6- radio patrulhamento terrestre, aéreo, lacustre e fluvial (a pé, montado, motorizado, embarcado e aerotransportado);
8- polícia judiciária militar e,
9- prestação de assistência e socorro em geral.
É o que se vê diuturnamente. Por isso, a Polícia Militar está presente em todos os municípios do Amazonas. Cultua o privilégio e a condição de servidora mais acessível ao público, bastando um aceno de mão, o discar do 190 (CIOPS) ou mesmo uma denúncia anônima para que exerça a sua missão. Nesta fase, tomando conhecimento da violação da ordem pública, cabe à Polícia Militar a primeira ação, que é a de intervir na ocorrência, cujos procedimentos constituem a preparação para o passo seguinte a ser realizado pelo órgão público ou particular, que detiver a responsabilidade para tal.
Como polícia ostensiva repressiva, a Polícia Militar tem entre suas missões o dever de restabelecer a ordem pública, de imediato, tão logo haja a manifestação de sua ruptura, amparando as pessoas que tiveram os seus direitos e garantias violadas, procedendo as diligências necessárias à captura dos delinqüentes. A Polícia Militar pode, sob a direção do governo estadual, também agir repressivamente através da força e da energia necessária para impedir tumultos e distúrbios, atuando como força de dissuasão, para restaurar a ordem pública. Além disso, atua repressivamente no combate à macro criminalidade e ao crime organizado.
5.3.1 Emprego no Campo da Segurança Interna
A Polícia Militar, inicialmente em ações de caráter policial, sob a direção do governo estadual, pode ser empregada desde a dissolução de reuniões proibidas por ato legal até a destruição de focos de agitação e o controle e eliminação de tumultos e distúrbios de rua. Nos casos mais graves pode ser empregada em ações de caráter militar contra focos de guerrilha. Nesta fase deve a Polícia Militar estar em condições de realizar a defesa de pontos sensíveis (pontes e estradas), bem como a guarda de instalações vitais para as cidades (água, luz, telefone, depósitos de combustível, etc...) precedendo o eventual emprego das Forças Armadas.
Num quadro mais crítico, onde se caracterize uma situação de grave comprometimento da ordem e que tenha sido superada a capacidade do governo estadual em fazer restabelecer a ordem, situação esta que pode ser determinada a critério do Governo Federal e que caracteriza a intervenção da União no Estado-Membro (CF, art.34, III), pode a Polícia Militar ser convocada a agir subordinada e sob o controle operacional do Comando Militar de Área.
5.3.2 Emprego no Campo da Defesa Territorial
Doutrinariamente, a Polícia Militar atendendo à convocação, inclusive mobilização, do governo federal, quando se presume a hipótese de guerra externa e ameaça de invasão do território nacional, pode ser empregada na Defesa Territorial, em suas missões específicas de Polícia Militar. Atuará a Corporação integrada às forças militares, com missões básicas de defesa dos pontos sensíveis e das instalações vitais, além de uma série de outras missões e objetivos planejados, orientados e coordenados pelo Comando Militar de área.
5.3.3 Emprego no Campo da Defesa Civil
As ações de defesa civil visam, basicamente, a prestação de socorro e assistência à população atingida pelas calamidades adversas ou em decorrência da guerra. À Polícia Militar cabe, predominantemente, atuar através do efetivo policial-militar, nas ações de policiamento em geral, na interdição da área sinistrada, no isolamento de zonas críticas ou perigosas, nas comunicações e colaboração nas ações de salvamento e retirada da população.
5.3.4 Emprego Residual
Segundo o desembargador Álvaro Lazzarini, em sua obra “Da Segurança Pública na Constituição de 1988”, cabe ainda à Polícia Militar uma competência residual de exercício de toda a atividade policial de segurança pública não atribuída aos demais órgãos. Assim a competência ampla da Polícia Militar na preservação da ordem pública, engloba inclusive, a competência específica dos demais órgãos policiais, no caso de falência operacional deles, a exemplo de greves ou outras causas, que os tornem inoperantes ou ainda incapazes de dar conta de suas atribuições, funcionamento, então, a Polícia Militar como a um verdadeiro “exército da sociedade”.
5.3.5 Traços Históricos da PMAM: Origem E Denominações
O período histórico compreendido entre os anos de 1835 e 1840 foi bastante conturbado para o Amazonas, notadamente com o movimento conhecido como Cabanagem que desestabilizou o governo na província do Pará e instalou a desordem social na região. Em 4 de abril de 1837, o presidente da província do Pará, general Soares d'Andrea, expede as Instruções Gerais autorizando a criação de uma guarda que pudesse combater os revoltosos cabanos e restabelecer a ordem pública na região. É nesse contexto que a briosa PMAM se origina.
Esta Guarda Policial absorveu o chamado corpo de trabalhadores, que já era militarizado e constituído de 12 companhias de trabalhadores, teve em seu efetivo 1339 (um mil trezentos e trinta e nove) homens. Seu primeiro comandante foi o Tenente Coronel de Artilharia Albino dos Santos Pereira, nomeado pela Portaria de 05 de julho de 1837.
Ao longo de sua história, a briosa corporação recebeu diversos nomes: Guarda Policial, Corpo Policial do Amazonas, Batalhão Militar de Segurança, Regimento Militar do Estado, Batalhão Militar e Força Estadual. Sendo sua atual denominação adquirida em 14 de novembro de 1938: de lá até os dias correntes a instituição é chamada de Polícia Militar.
Atuação em Canudos
“Em canudos, com sangue batizados,
na luta com jagunços foram heróicos”
A 04 de agosto do ano de 1997, por ordem do então governador do Estado, Eduardo Ribeiro, o 19º Batalhão de Infantaria da Força Pública do Amazonas, composto por 24 oficiais e 249 praças, embarcou com destino ao Estado da Bahia, no cruzador Carlos Gomes com a finalidade de incorporar a outros contingentes empenhados em lutar contra os rebelados de Antonio Conselheiro e seus jagunços que estavam impondo o terror e subverter a ordem no interior baiano.
Foi comandante da tropa amazonense o então tenente coronel Cândido Mariano. No regresso, após a derrocada do arraial de Canudos, a briosa tropa recebeu como presente por seus feitos e atos de bravura uma bandeira nacional bordada a ouro ofertada pela mulher baiana.
De 273 policiais que partiram, 95 não retornaram, pois morreram em combate. A tropa vitoriosa retornou a Manaus em 08 de novembro de 1897, quando foram recebidos como heróis pela população.
Ação no Acre
“No Acre, com batalhas e vitórias,
Deram ao Brasil, maiores extensões”
Devido às disputas entre Brasil e Bolívia, a corporação bravamente expulsou os bolivianos das terras em litígio. Neste episódio a PMAM incorporou-se ao contingente de Plácido de Castro, pela manutenção do Acre como parte integrante do Brasil.
Ação na 2ª Guerra Mundial
Em 1942, a PMAM não sofreu qualquer anormalidade em seu efeito, porém, no decorrer da 2ª guerra mundial contra as potências do eixo, colaborou a Polícia Militar do Amazonas na Batalha da Produção, auxiliou a construção de hospedarias para imigrantes; policiou e organizou o transporte dos chamados “soldados da borracha” e finalmente trabalhou nos serviços do Porto de Manaus, pelo período de três anos, empenhada no descongestionamento do tráfego fluvial, assegurando o abastecimento da região.
Hoje, visando acompanhar a evolução social e os movimentos da história, a milícia amazonense vem buscando aprimorar cada vez mais tanto o homem quanto seus procedimentos junto à população que tanto necessita de seus serviços.
Quanto à sua Estrutura Organizacional, a Polícia Militar, de acordo com a Constituição Estadual, é órgão da administração direta do Estado, “organizada com base na hierarquia e disciplina”, sob a autoridade superior do Governador do Estado.
Organizada segundo o “processo escalar”, nos níveis estratégico, tático e operacional, a Corporação é departamentalizada “por funções” – atividade-fim e atividade-meio – e operacionalmente “por território”, segundo a localização geográfica de suas Unidades, articulando-se em Áreas, Subáreas e Setores, denominados “espaços geográficos”, que circunscrevem os locais de responsabilidade atribuídos às Frações PM.
A Polícia Militar do Amazonas insere-se na administração Pública Estadual como órgão subordinado ao Governo do Estado e vinculado, operacionalmente, à Secretaria da Segurança Pública. Seu organograma obedece à Lei nº 22.774 de 22 de julho de 2002, que aprova o Regimento Interno da PMAM.
O Comando de Policiamento da Capital – CPC, é composto por 11 (onze) Unidades Operacionais: cinco Batalhões de área e seis Companhias Interativas Comunitárias, distribuídos em todas as zonas da cidade.
6. PODER DE POLÍCIA, DIREITOS HUMANOS E POLÍCIA MILITAR
Cada autor, ao idealizar sua obra, procura oferecer um conceito próprio do tema que está sendo abordado. Daí a discrepância existente entre os vários conceitos existentes acerca do tema "PODER DE POLÍCIA".
Segundo Caio Tácito "é o conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais" (1996, p.361).
Segundo o art. 78, do Código Tributário Nacional - CTN:
Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
E na lição de Cavalcanti:
O poder de polícia constitui um meio de assegurar os direitos individuais porventura ameaçados pelo exercício ilimitado, sem disciplina normativa dos direitos individuais por parte de todos", e acrescenta que se trata de "limitação à liberdade individual mas tem por fim assegurar esta própria liberdade e os direito essenciais ao homem (1956, p.6).
Atuando quase sempre de modo dissuasivo e repressivo, faz-se necessário que a instituição policial se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de meios mais energéticos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade para o agente aplicador da lei. Importa que haja proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida.Este eventual excesso pode se apresentar de dois modos:
- a intensidade da medida é maior que a necessária para a compulsão do obrigado;
- a extensão da medida é maior que a necessária para a obtenção dos resultados licitamente pretendidos.
Para não incorrer em crime, incube aos agentes policiais observar alguns princípios, dentre os quais se destacam os atributos do poder de polícia.
A discricionariedade, que se traduz na livre escolha, pelo agente policial, da oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, bem como de aplicar as sanções e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum interesse público. Neste particular e desde que o ato de polícia administrativa se contenha nos limites legais, e a autoridade se mantenha na faixa de opção que lhe é atribuída, a discricionariedade é legítima. No uso da liberdade legal de valoração das atividades policiadas e na graduação das sanções aplicáveis aos infratores é que reside a discricionariedade do poder de polícia.
A auto-executoriedade, ou seja, a faculdade de o aplicador da lei decidir e de executar diretamente a sua decisão através do ato de polícia, sem intervenção do .Judiciário. Com efeito, no uso desse poder, a polícia impõe diretamente as medidas ou sanções necessárias à Contenção da atividade anti-social, que ela visa a obstar. Nem seria possível condicionar os atos de polícia à aprovação prévia de qualquer outro órgão ou Poder estranho à Administração. Se o particular se sentir agravado em seus direitos, sim, poderá reclamar pela via adequada, ao Judiciário, que só intervirá a posteriori para a correção de eventual ilegalidade administrativa ou fixação da indenização que for cabível. O que o princípio da auto-executoriedade autoriza é a prática do ato de polícia administrativa pela própria administração, independentemente de mandado judicial.
A coercibilidade, isto é, a imposição coativa das medidas adotadas pela polícia, constitui também atributo do poder de polícia. Realmente, todo ato de polícia é imperativo, admitindo até o emprego da força pública para o seu cumprimento, quando resistido pelo administrado. Não há ato de polícia facultativo para o particular, pois todos eles admitem a coerção estatal para torná-lo efetivo, e essa coerção também independe da autorização judicial. É a própria Administração que determina, e faz executar as medidas de força que se tornarem necessárias para a execução do ato ou aplicação da penalidade administrativa resultante do exercício do poder de polícia.
Embora se caracterize pela imposição de abstenções aos particulares, o poder de polícia não é um poder irrestrito. Ele tem limitações a fim de garantir o bem comum da população porém sem violar princípios constitucionais de direitos humanos. A questão que trazemos à discussão diz respeito a essa limitação do poder. O poder de polícia está sujeito a limites jurídicos: direitos do cidadão, prerrogativas individuais e liberdades públicas asseguradas na Constituição e nas leis. Sua utilização não deve ser excessiva ou desnecessária, de modo a não figurar abuso de poder.A coexistência da liberdade individual com o poder de polícia repousa na harmonia entre a necessidade de respeitar essa liberdade e a de assegurar a ordem social
Assim, as limitações à liberdade e à propriedade em que atua, por exemplo, o poder de polícia, não se expressam em sacrifícios de direitos, há, no entanto, a decadência de um direito individual, sempre do administrado, em razão de um interesse social. É importante salientar que, em países como o nosso, altamente concentrador de renda, é arriscado conferir a determinados funcionários poder, teoricamente, limitado, porém, que na prática poderá ser ilimitado. Assim, pode um funcionário mal treinado e mal remunerado seduzir-se pelo poder que lhe é oferecido para intimidar e extorquir a população, obtendo, desta forma, proveitos em causa própria. Desta forma, podem ocorrer tais ilicitudes, propiciando a corrupção e o desmando administrativo daqueles que saem às ruas para evitar os abusos dos direitos individuais.
É nesse sentido que a polícia deve ter seus agentes treinados suficientemente para a execução de suas funções, tanto técnico quanto psicológico, para agirem com tranqüilidade frente a quaisquer situações, eis que são pessoas que tratam com a população. Ou seja, pessoas incumbidas de fiscalizar não podem sentir "raiva" ou "inveja" dos que devem ser examinados, pois poderão punir como uma chamada "válvula de escape", um mecanismo de revide. Vejamos o que diz Amaral:
É bem por isso que a polícia só está autorizada a usar da violência como último recurso dos muitos que a habilidade profissional pode lhe garantir. Nem mesmo em regimes onde a pena de morte é legalizada, pode-se imaginar o policial (cuja opção profissional é de enfrentar o crime, tanto quanto o médico a doença com todos os riscos a isto inerente) como agente exterminador do criminoso, senão do crime; este sim o alvo imediato e principal do policial, de vez que o criminoso só o é subseqüente e derivadamente. Mesmo nos regimes penais mais cruéis, menos civilizados, sempre se abandonou a violência, quando se alcançou a convicção de que a criminalidade não se reduzia por tais meios. Aqui não se pode confundir bravura militar com a bravata policial-militar violência com eficiência; farda/ostensividade com militar/bélico. Essas confusões tem gerado incompreensões, ineficiência, desgastes políticos. Polícia e criminalidade são matérias técnica do Direito Administrativo (especificidade do poder polícia em geral) e de Direito Penal, jamais estratégia bélica, operação de guerra (2003, p.39)
Direitos humanos como reconhecimento democrático da condição de igualdade de todos frente à pretensão do desenvolvimento e aos deveres; representam o Estado de Direito, que consubstancia-se por um conjunto de normas jurídicas asseguradoras de direitos, que devem ser seguidas, respeitadas e vivenciadas por todos os cidadãos. São, então, a base de sustentação de um Estado democrático. Neste prisma nos vem a seguinte indagação: que segurança pública o Estado tem assegurado ao cidadão e com qual perspectiva?
O que tem ocorrido em nossa sociedade é que o combate tornou-se a regra, a segurança uma exceção. Por esta via de análise, podemos afirmar que a sociedade vivencia uma insegurança pública. A distorção existente no papel que a polícia tem exercido perante a coletividade deve mudar. O cidadão não necessita de uma polícia que o encare como um inimigo em potencial; para tanto, necessitamos que haja uma nova concepção da polícia e da organização policial, de suas finalidades, de seu treinamento e de seus métodos de ação.
6.1 Limites da Atividade das Forças Policiais
A preservação da ordem pública é função das forças policiais, que devem assegurar o exercício dos direitos outorgados ao cidadão. No exercício de suas atribuições, os órgãos policiais encontram-se autorizados a empregarem a força necessária para o restabelecimento da paz e da tranqüilidade pública limitando os direitos individuais que contrariem a ordem estabelecida.
O uso da força pelos órgãos policiais não autoriza a prática do abuso, ou o excesso. Os agentes policiais devem tratar o cidadão com respeito, observando os direitos que lhe são outorgados. A limitação dos direitos e garantias individuais exige violação à ordem estabelecida, que coloque em perigo a segurança e a paz social, que são de interesse da coletividade. Meirelles complementa:
Os agentes policiais no exercício de suas funções encontram-se sujeitos ao limites da lei. A atividade policial possui aspectos discricionários, que são essenciais para o cumprimento das funções de segurança pública. O ato de polícia como ato administrativo que é fica sempre sujeito a invalidação pelo Poder Judiciário, quando praticado com excesso ou desvio de poder (1972, p.291).
O cidadão em determinados momentos poderá ter o exercício de seus direitos limitados. As garantias constitucionais não impedem a atuação das forças policiais, que são responsáveis pela ordem pública e não podem ser omissos no exercício de suas funções sob pena de responsabilidade. A administração pública, civil ou militar, encontra-se sujeita aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, da CF). As forças policiais no exercício de suas funções também se encontram sujeitas aos princípios que regem a administração pública. O agente policial deve agir nos limites da lei, empregando a força para manutenção ou restabelecimento da ordem quando esta for necessária.
Ao se afastar de suas atribuições, o agente policial poderá caminhar para o abuso, que não contribui para o combate a violência e a diminuição da criminalidade. A sociedade necessita de uma força policial que seja atuante e respeite os direitos e as garantias assegurados ao cidadão. Conforme Freitas:
As autoridades policiais necessitam de certo arbítrio para poder alcançar seus objetivos e realizar suas funções. Seria fechar os olhos à realidade e torná-las ineficientes impedi-las de assim agir. Mas esse arbítrio deve ser exercido dentro dos limites da sua necessidade, sob pena de, ocorrendo o excesso constituir crime(1997. p. 50).
A atividade policial encontra-se sujeita aos limites da lei, e seus agentes que sem necessidade ultrapassam os limites estabelecidos ficam sujeitos a processos criminais e disciplinares. O ato abusivo praticado pelas forças policiais traz como conseqüência a obrigação do Estado em indenizar o particular pelo dano suportado.
6.2 O Monopólio do Estado é da Força, Não da Violência
A segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos (art. 144, caput, da C.F), sendo essencial para o desenvolvimento da sociedade. A Constituição Federal assegura aos brasileiros (natos ou naturalizados) e aos estrangeiros residentes no país direitos que não podem ser objeto de Emenda Constitucional por serem cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV).
Os direitos fundamentais em determinadas situações com base na lei poderão sofrer restrições. A preservação da ordem pública autoriza as forças policiais a limitarem a liberdade do cidadão, sem que isso configure constrangimento ilegal, que somente existirá no caso de abuso ou excesso. Confirma Meirelles:
Desde que ocorra um interesse público relevante, justifica-se o exercício do poder de polícia da administração para a contenção de atividades particulares anti-sociais ou prejudiciais à segurança O particular não está acima da lei e deve obedecê-la, ou sujeitar-se as conseqüências de seu descumprimento (1972, p.290).
Uma das características mais nítidas da sociedade moderna é sem dúvida o monopólio do uso da força pelo Estado. Todavia, em hipótese alguma pode ser confundido com o uso desmedido da violência. O uso da força pelos encarregados da aplicação da lei tem limites no próprio ordenamento jurídico do Estado. O aplicador da lei age em nome deste, na defesa de seus interesses. “Como uso da força entendemos que é toda e qualquer ação contrária a indivíduos isolados ou em grupos, praticadas por agentes do Estado, que, através de seus atos, venham a reduzir a capacidade de resistência às suas determinações legais” (SCHRODER, 2001,p.53).
Ao adotar a coação física, o Estado tem de fazê-lo em nome do bem comum. A vingança privada, entendida como a luta individual de cada um pelo seu direito, é intolerável nos dias correntes. Mais que isso, é censurada e punida na forma do contrato social celebrado entre o cidadão e o Estado, em que este reserva exclusivamente para si as ações de força coercitiva e coativa visando sempre o bem comum. Segundo Hobbes, na sua conhecida obra “Leviatã” de 1651,
O Estado é quem há de proteger as pessoas e as propriedades contra a ação de outros indivíduos e, para concretizá-lo, deve tirar as ações violentas do jogo social e reservá-las exclusivamente para si, enquanto ente representativo da vontade geral (2002, p.146).
Entretanto, esta força do Estado deve sempre estar sujeita a controles para evitar seu mau uso. É por isso que deve estar normatizada, regulada por certas leis que restringem sua execução e certas condutas e procedimentos que legitimem ações de seus agentes. Tais normas visam a proteger os cidadãos dos excessos ou arbitrariedades das autoridades que representam o Estado.
Hoje, a sociedade entende que é muito arriscado dar carta branca a um grupo organizado e armado, como as polícias. É por isso que impõem limites a tais ações. Este fato é conhecido como Estado Democrático de Direito.
O que a lei e a ordem constituída protegem é o bem comum, ainda que essa proteção possa admitir o cerceamento da liberdade de alguns e penas alternativas a outros, pois o que ela visa é harmonizar conflitos , sancionar transgressores da norma e tutelar o bem coletivo. Todavia podem ocorrer mudanças de acordo com as vontades da coletividade. Porém às vezes pode ocorrer contradições entre o que a vontade do povo quer e a ordem constituída, o que pode gerar contradições.
Em segurança pública, as contradições são maiores, já que quase sempre tais problemas são reflexos da própria estrutura da sociedade. Por exemplo, uma dada sociedade que espera ter seus direitos individuais e coletivos respeitados, pode pretender que os direitos alheios não o sejam. Isto decorre normalmente da insegurança que a sociedade possui devido a ausência de ações estatais. É por isso que um cidadão inseguro pode desejar a pior sanção possível a quem pratica um crime violento de grande repercussão, como forma de criar um bode expiatório, de modo que outros não venham a praticar crimes semelhantes.
Ocorre que, em alguns momentos, a polícia acaba extrapolando seus limites e agindo fora dos limites legais, para satisfazer vontades nem sempre legais da população, o que configuram as ações extrajudiciais da instituição que deveria proteger a lei e o Estado normativo constituído. Nesse caso, viola-se a democracia e rompe-se o pacto entre cidadão e Estado, conforme reitera Briceño (1999):
teoricamente, quando descumpre a lei, a polícia deveria receber uma manifestação de repúdio da comunidade. Entretanto, muitas vezes, observa-se o apoio da comunidade a ações extrajudiciais por ela praticadas. Trata-se de uma circunstancia especial, pois na verdade está se violentando o Estado Democrático de Direito. O problema é que, com freqüência, os policiais, ou as pessoas investidas de autoridade na área de segurança pública, percebem, ou interpretam, as exigências da população para que sejam mais drásticos com a delinqüência como uma espécie de autorização que valida a extrapolação de suas funções para que surjam as ações extrajudiciais nas quais a polícia começa a atender à comunidade, e não à lei. (1999, p.120).
A situação parece ser até certo ponto paradoxal, na medida em que a comunidade que deveria dizer não à violência policial, outorga-lhe o uso desmedido da força. A sociedade que deveria falar à polícia “não mate, cuidado, respeite os direitos humanos das pessoas”, está começando a dizer-lhe o contrário, o que de fato só contribui para fomentar mais violência. Em verdade, o aumento da criminalidade e da violência trouxe no seu bojo o medo e receio justo das pessoas de serem mais uma vítima da violência. Este fato contribui sobremodo para a população apoiar medidas nem sempre ética e moralmente legais em atos de desespero devido à angústia do que poderia lhes acontecer. É por isso que cria no inconsciente coletivo um desejo de vingança ante a possibilidade de sofrer violência.
7. SERVIR E PROTEGER OU FINGIR PROTEGER?
A instituição policial tem a nobre missão de prestar um serviço muito especial à sociedade que é a segurança. É um serviço fundamental para qualquer sociedade. Ela é uma organização fundada na hierarquia e disciplina cuja função social é restringir o uso e gozo de bens por parte daqueles que não respeitam a ordem constituída. Nenhuma sociedade existe sem um ente que paire acima de todos e exerça um poder coercitivo erga omnes. Contudo, este poder que é outorgado aos agentes aplicadores da lei não deve ser usado em desacordo com as normas que a regem, pois do contrário corre-se o risco de retorno de todos ao chamado estado de natureza onde prevalece a lei do mais forte e mais capaz.
A instituição deve ser parceira da comunidade e não antagônica , pois depende de sua aprovação para se perpetuar, do contrário o vetor social encontra outros meios que se ajustem às suas necessidades. Hoje não se quer mais uma polícia política ou uma polícia corrupta, desonesta e por demais repressora. A comunidade não quer mais uma polícia que age em desacordo com a lei.
Praticar os direitos humanos parece ser tão difícil para os policiais. Mas isto ocorre por não entenderem, ou não compreenderem os propósitos dessa doutrina que parece ser tão antagônica aos policiais. Tudo que se deseja é que sociedade e polícia caminhem de mãos dadas. É inegável a importância da organização policial para o bem de todos e isto precisa ser entendido por quem atua em servindo e protegendo a sociedade dos maus feitores.
Normalmente a instituição é muito fechada e até mesmo avessa à comunidade. Tanto assim que faz claras distinções chamando aos não integrantes da corporação de “paisanos” se isolando da comunidade, que deveria servir e proteger. É evidente que a posição social do policial pode ser considerada de forma paradoxal e até mesmo ambígua algumas vezes. Ele é ao mesmo tempo protetor e repressor, temido e desejado, e tal ocorre de modo até mesmo natural. A dificuldade de relacionamento externo é expresso geralmente na idéia de que a polícia não existe para ser gostada, amada e desejada, mas sim, para ser temida, muito respeitada e até odiada pela comunidade. Tal fato pode ser observado nas palavras de um policial da instituição com mais de vinte anos de polícia, onde evoca um passado em que a polícia impunha medo e temor na população:
Na minha época a polícia era polícia, temida e respeitada. Se um pilantra visse um carro de polícia, saia correndo. Hoje em dia é muito diferente, o bandido faz é encarar a polícia. A democracia deu muita liberdade pra eles e marrou as mãos da polícia.
O que este policial tem em mente ainda é uma imagem do passado, que não mais se ajusta aos novos tempos, pois concebe uma polícia temida e respeitada, onde as pessoas deveriam correr e se esconder da polícia quando a visse. Evidente que hoje essa autoridade imposta pelo medo não mais funciona. A sociedade mudou e a polícia insiste em viver no passado. A autoridade do medo é negada nos dias que correm. Para policiais que pensam em evocar a polícia do passado, o medo que deveriam impor é o mesmo temor coercitivo do Estado autoritário e temido. Este saudosismo evoca um Estado mais que autoritário, na verdade temido. Nesta visão, a democracia só trouxe no seu bojo os discursos dos direitos humanos que impede o policial de exercer plenamente sua autoridade delegada por um Estado que só existe nas mentes retrógradas.
Bretãs complementa este raciocínio dizendo que:
A natureza humana é imutável e sórdida, mas a sociedade, num passado não muito distante, já foi muito melhor, quando a polícia era polícia e mais respeitada, não importando à sociedade se era preciso bater de vez em quando num ou noutro vagabundo. O uso da força era um atributo fundamenta, empregado pelo lado certo do conflito social. Talvez por isso tantos policiais ainda se encantem com o uso da força e busquem reconstruir à bala sua Terra do Nunca (1999, p.163).
8. CONFIANÇA NA INSTITUIÇÃO POLICIAL MILITAR
E na polícia militar, o senhor confia? O entrevistado fica em silêncio. Depois de um tempo pensando, olhando para o chão, responde: “sei lá, eu tô desenganado com essa polícia. Sei lá, cara, mais ou menos. As polícia são covarde. Às vez pega gente que num deve e judia. Mas tem uns que merece respeito” – cidadão-morador do bairro Zumbi, Zona Leste de Manaus.
Toda reflexão sobre os problemas policiais atuais deve levar em conta o seguinte: o desemprego, a pobreza engendram conflitos, divisões e violências. Na maioria dos casos, é nessas condições que a polícia é chamada a intervir. O risco é que a atuação policial, nestas situações, ocorra com ações eminentemente repressivas, que podem provocar repulsa, ressentimentos e hostilidades por parte de integrantes das comunidades em relação à polícia. Uma das conseqüências decorrentes desse tipo de intervenção é a redução da participação das pessoas na ação policial. Essa participação é aqui entendida como sendo: a cooperação dos cidadãos com os policiais durante ocorrências e operações, acionamento do disque-denúncia e situações similares, quando a comunidade é chamada a colaborar com informações que aumentam a eficácia.
No Brasil, a cooperação, o envolvimento dos cidadãos e o sentimento de identificação com a polícia são dificultados por problemas históricos. A polícia no Brasil foi instituída e permaneceu por um longo tempo, não a serviço da sociedade, mas do Estado e dos grupos dominantes, na direção do fortalecimento do uso privado da violência contra os adversários sociais daqueles grupos. A ocorrência de experiências negativas do indivíduo ou de pessoas de seu convívio próximo não impacta a opinião confiante que esse grupo de pessoas apresenta em relação à polícia, ou seja, mesmo tendo vivido experiência negativa o indivíduo confia na polícia. A ocorrência de experiências positivas do indivíduo ou de pessoas de seu convívio próximo tem peso significativo na opinião confiante que esse grupo de pessoas apresenta em relação à polícia.
Depoimentos de moradores de bairros pobres de Manaus mostram que, embora tradicionalmente esses atores sociais tenham sofrido maior vigilância e arbitrariedade policial, não há consenso em relação à imagem que fazem dos policiais, demonstrando o tratamento diferenciado da polícia em relação à posição de classe, cor, idade, gênero, status econômico, familiar que as pessoas ocupam. Segundo GIDDENS:
a confiança é estabelecida a partir da crença de uma pessoa num dado conjunto de resultados e eventos. Essa crença expressa uma fé na probidade ou no conhecimento técnico do outro. Isto significa que o perigo e os riscos estão neutralizados ou minimizados por se acreditar no outro ou no sistema instituído, uma vez que, em condições de modernidade, a confiança está vinculada à contingência e não mais à idéia de ‘acasos controlados pelos deuses’ (1991, p.40).
O depoimento de uma entrevistada reforça esta posição:
Eu não confio na polícia. Eles bateram no meu filho, queriam dinheiro. Mas, mesmo assim, com todo erro, tem que ter polícia e ela tem que trabalhar direito. Quando minha filha ia ganhar neném eu chamei a Polícia Militar e eles a levaram para o hospital. Se eu precisar da polícia de novo, eu chamo. Porque, apesar de tudo, na polícia, a gente precisa confiar – Dona Rosa, 49 anos, analfabeta, moradora do bairro São José .
9. A FORMAÇÃO DE POLICIAIS NA DOUTRINA DE DIREITOS HUMANOS
Policias Militares de todo o país discutem direitos humanos e princípios humanitários. Representantes das Polícias Militares dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal estiveram reunidos em Brasília para discutir a integração dos direitos humanos e princípios humanitários na formação de seus quadros. O encontro é promovido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (Senasp), que desenvolvem juntos o Projeto de Difusão das Normas de Direitos Humanos e Princípios Humanitários Aplicáveis à Função Policial, desde 1998.
Aproveitando o ensejo, a Polícia Militar do Estado do Amazonas, através do DECAP, vem se empenhando em proporcionar cursos voltados para os direitos humanos. No mês de agosto de 2003, por exemplo, o DECAP realizou o Curso de Direitos Humanos e Humanitários, do qual participaram 25 oficiais da Polícia Militar, que foram treinados para exercerem as funções de Instrutores Multiplicadores dos princípios fundamentais dos Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário.
A intenção é incluir estes temas na formação dos policiais brasileiros, mudando a cultura e o comportamento na hora de usar a força e as armas de fogo, em situações de abordagem, captura e detenção. Desde o início do projeto, há seis anos, 1.020 instrutores policiais já foram formados e atuam agora reproduzindo estes conhecimentos dentro de suas instituições. O próximo passo é incorporar estas regras internacionais de conduta de maneira transversal ao currículo e nos manuais e doutrinas das forças policiais brasileiras.
De um modo geral, as ações policiais no Brasil são executadas com o que já foi chamado de “rigor necessário”. A sociedade acaba justificando um certo tipo de prática porque as vítimas seriam, via de regra, suspeitos ou bandidos. O senso comum entende que para combater a truculência e o despreparo dos profissionais designados para lidar com a segurança pública torna cada vez mais tênue a linha que os separa dos verdadeiros marginais e bandidos.
Na maior parte das vezes o apoio da opinião pública, muitas vezes irrefletido, é nada mais do que o reflexo de uma população saturada com os níveis crescentes de violência urbana em todo o país, onde o sentimento de insegurança e impotência cresce até mesmo em cidades menores. O que não é muito claro para muitos, é que, ações violentas praticadas pela polícia expressam um padrão de comportamento que já é considerado aceitável, no caso até heróico, pela população equivocada. Aceitar a adoção desta prática pela polícia justifica a impossibilidade de conduzir-se uma investigação séria no caso de denúncias envolvendo, por exemplo, extermínio, praticado pela mesma instituição. O ponto que destacamos é que quando as práticas, violentas e inconseqüentes, dos marginais tornam-se indiscerníveis daquelas realizadas pela polícia, a sociedade que neste caso aplaudiu a atuação desta última, acaba ficando a mercê das duas.
10. DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
No Brasil de hoje, fala-se muito em Direitos Humanos; tornou-se politicamente correto mencioná-los. No entanto, há pouco mais de 15 anos, abordar os Direitos Humanos em nosso país era considerado subversão, os seus divulgadores eram mal vistos e até execrados como "defensores de bandidos". A deturpação do significado dos Direitos Humanos era proposital por parte de grupos de extrema direita, aos quais interessava a consolidação do status quo e do autoritarismo. Estas facções exploravam o medo da violência crescente e sobretudo a tomada de consciência das classes populares esmagadas ao longo de 21 anos de ditadura.
A acirrada incompreensão e a campanha contra os Direitos Humanos provêm do desconhecimento daquilo que eles representam ou até mesmo de posições egoístas dos interessados em manter situações de privilégios. No entanto, eles interessam a todos e a cada um em particular. Sem respeito aos Direitos Humanos, não pode haver sociedade justa, tampouco democracia sólida. 10.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos
Por iniciativa do então Presidente Fernando Henrique Cardoso reuniram-se, no Ministério das Relações Exteriores, em maio de 1993, representantes do Ministério da Justiça, da Procuradoria Geral da República, além de parlamentares, e as mais importantes organizações não-governamentais de direitos humanos, com a finalidade de elaborar um relatório com diagnóstico das principais dificuldades do país, de modo a definir a agenda do Brasil para a Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, em junho de 1993. Após esta conferência, setores do Estado e diversas entidades de direitos humanos foram convocadas pelo então Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, com a finalidade de elaborar uma Agenda Nacional de Direitos Humanos.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reiterou que os direitos humanos eram parte essencial de seu programa de Governo. Para ele, no limiar do século XXI, a "luta pela liberdade e pela democracia tem um nome específico: chama-se direitos humanos". Determinou, então, ao Ministério da Justiça a elaboração de um Programa Nacional de Direitos Humanos (P.N.D.H). O Governo brasileiro da época, embora considerasse que a normatização constitucional e a adesão a tratados internacionais de direitos humanos fossem passos essenciais e decisivos na promoção destes direitos, estava consciente de que a sua efetivação, no dia-a-dia de cada um, depende da atuação constante do Estado e da Sociedade. Foi com este objetivo que se elaborou o Programa Nacional de Direitos Humanos.
O objetivo é identificar os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil, eleger prioridades e apresentar propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam a sua plena realização. Com a instituição do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH pelo Presidente da República através do Decreto Nº. 1904 de 13 de maio de 1996 faz-se o diagnóstico da situação dos Direitos Humanos no País e propõe as medidas para a execução das medidas de promoção e defesa dos mesmos, e objetiva a implementação de atos e declarações internacionais.
Na proposta de ações governamentais, relacionadas à segurança das pessoas e a luta contra a impunidade, estão previstas cerca de trinta medidas, de curto e médio prazos, que dizem respeito, direta ou indiretamente às organizações policiais, sejam elas civis ou militares, destacando-se dentre às inúmeras: regular o uso de armas e munições pelos policiais nos horários de folga e aumentando o controle nos horários de serviço; estimular o aperfeiçoamento dos critérios para a seleção, admissão, capacitação, treinamento e reciclagem de policiais; assinar o protocolo de intenções entre o Ministério da Justiça e a Anistia Internacional para ministrar cursos de direitos humanos para as polícias estaduais; estimular programas de cooperação e entrosamento entre policiais civis e militares e entre estes e o Ministério Público; atribuir à Justiça Federal a competência para julgar os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção a direitos humanos; regulamentar o art. 129, VII, da Constituição Federal, que trata do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, dentre outros. As organizações policiais deverão no seu dia-a-dia , manifestar nos atos de polícia, a incorporação doutrinária destes pressupostos, até por uma questão de sobrevivência institucional.
Portanto, cada policial militar deve conhecer as políticas públicas para proteção e promoção dos direitos humanos no Brasil, notadamente aqueles que detêm cargos de chefia ou comando.
10.2 Influencias Sociológicas e Culturais
Quando se discute a educação em direitos humanos para as forças policiais brasileiras, faz-se necessário identificar o estágio de democratização dessas instituições e suas reais necessidades, assim como conhecer o processo histórico em que as mesmas estão inseridas, suas posições no contexto de poder do Estado e seu papel dentro da atual conjuntura social, política e econômica.
A sociedade brasileira vive hoje momentos de ressaca pós-ditadura militar, período este marcado por um regime político autoritário que desrespeitava os direitos e garantias individuais. Nesse momento histórico do país as tropas militares e forças policiais assumiram uma importante função de manutenção do poder por meio da repressão, prisão, tortura e morte de simpatizantes de ideologias contrárias. Tais procedimentos deixaram marcas indeléveis nessas instituições, materializadas pelo comportamento autoritário e repressivo presentes nas ações policiais diárias. Concomitantemente, somados ao ranço autoritário adquirido nesse período, tem-se mais de 500 anos de práticas repressivas, calcadas em nossa violência histórica. Por tudo, conclui-se que o regime democrático formal, vigente no país, não acarretou uma repentina e eficaz mudança das práticas antidemocráticas realizadas pelas instituições policiais.
Forjadas, desde sua criação, como braço armado do Estado e executoras de seus interesses, as instituições policiais vivem hoje um conflito de identidade, em busca de auto-afirmação dentro do novo papel exigido por um estado democrático de direito.
Nos dias de hoje, a violência no país continua a ser enfrentada como no passado, ou seja, com ênfase nas estratégias repressivas calcadas em uma doutrina belicista. Aliás, segundo Ricardo Balestreri, tal pensamento foi construído a partir da parceria histórica entre as Forças Armadas e a polícia (não só a militar, mas também a civil), diante da ideologia de segurança nacional que induzia a uma visão do enfrentamento da criminalidade à semelhança de uma guerra contra inimigos internos do Estado, em prol da segurança interna e territorial. Esta distorção serve de pano de fundo para a discriminação e a violência da polícia no momento em que permite tratar os espaços públicos como campo de batalha e o cidadão como mero figurante no teatro de operações.
A ideologia militarista adotada para a segurança do país está arraigada historicamente no pensamento dos políticos e da sociedade em geral. Isto é facilmente identificado quando observamos o clamor popular pela utilização do exército no patrulhamento das cidades (SILVA, 1998p.12)
Diante das características enfocadas, vê-se claramente que a educação nas escolas policiais no Brasil traz consigo a reprodução de um ranço autoritário, apresentado de forma ostensiva, outras vezes implicitamente ou mesmo incutido de forma subliminar. O sistema de ensino adotado pelas policias reproduz um pragmatismo pedagógico calcado exclusivamente no treinamento técnico-científico. As metodologias de ensino tradicional e tecnicista são normalmente empregadas pois se prestam, de forma mais eficiente, à reprodução do conhecimento e da ideologia impregnada nas instituições.
A polícia entende que, para conter a violência “ilegítima” praticada por delinqüentes, deve utilizar-se da violência “legítima” em proporção e eficácia superiores à de tais indivíduos violentos. A sociedade exige da polícia o cumprimento de suas obrigações constitucionais de manutenção da ordem pública e se a mesma não for suficientemente eficiente para neutralizar a violência “ilegítima” praticada pelos delinqüentes é porque não foi usada a violência “legitima” suficiente
A contradição está posta. Como se constituir uma polícia democrática, cidadã, que respeita os direitos humanos, se a mesma mantém severos laços com uma cultura repressiva e autoritária imposta pela própria sociedade que, até os dias de hoje, não se libertou do ranço autoritário adquirido em 500 anos de práticas repressivas?
A polícia não age isolada do contexto social, ela sofre interferências constantes do próprio meio, até porque seus integrantes são originários do mesmo tecido social em que atua. A manipulação da polícia por pressão dos setores mais altos da sociedade é um exemplo. Essa educação informal, que compete e quase sempre suplanta a educação formal, faz desacreditar na teoria repassada nos bancos escolares e reafirmar a fragilidade do sistema de ensino policial tradicional. Longe da reflexão crítica sobre a prática aprendida durante o processo de ensino-aprendizagem, o policial, durante o exercício da sua atividade profissional nas ruas, tem reforçado preconceitos e estereótipos contra categorias vulneráveis da sociedade e aprendido técnicas de enfrentamento da criminalidade desassociadas do respeito aos direitos individuais e da dignidade humana, entendendo-as como eficientes e eficazes.
Finalmente, buscando, ainda, algumas características do patrimônio cultural das instituições policiais que dificultam a definição de uma estratégia eficiente de educação em direitos humanos dessas corporações, identifica-se a subcultura policial..Esta subcultura policial constitui-se em uma das principais tensões entre a polícia e a sociedade, no momento que impulsiona o agente policial à prática da violência sob a filosofia da necessidade de manter a vantagem sobre o criminoso. Isto constrói uma barreira antagônica e hostil que separa a polícia da sociedade, no momento em que cria no imaginário do policial a possibilidade genérica da existência de um criminoso em potencial em cada cidadão, o qual, segundo a sua convicção, exteriorizará o seu lado delinqüente diante da fragilidade da ação da polícia.
11 POLÍCIA, DEMOCRACIA, ESTADO DE DIREITO E DIREITOS HUMANOS
A segurança pública não pode ficar apartada do precioso sentido da justiça, como seu ideal supremo, porque a legitimidade das normas jurídicas, que a consagram, somente se consolidará pela aceitabilidade social e a sociedade sabe muito bem rejeitar o que lhe é supérfluo e privilegiar o que lhe é necessário, pelo seu apurado senso do justo.
Por que estudar a Polícia Militar do Amazonas? Por reconhecer a importância de um melhor entendimento sobre destacada instituição coercitiva que faz parte do sistema de segurança pública. Em segundo lugar, pela ausência de estudos institucionais sobre a polícia militar do Amazonas. Fala-se muito sobre a PMAM, mas ela é pouco conhecida.
A Política de Segurança Pública é o braço penal da sociedade. Nele pontifica a Polícia que é um tipo particular de instituição que usa a força. Daí sua visibilidade, para produzir ordem definida pelos gestores da Segurança Pública. A Polícia faz parte de uma teia de outras instituições, como a família, igreja, trabalho etc., encarregadas de manter o controle social sobre o indivíduo e/ou grupo. A maioria dos policiais da Corporação parece não ter consciência da exata noção da missão de sua instituição e da imensa possibilidade que a PM tem de contribuir decisivamente para a efetivação do Estado de Direito no Estado. O nosso estudo almeja contribuir nesta direção.
A Polícia, que é um órgão político, recruta seus membros na sociedade e, nesse aspecto, espelha as marcas estruturais das relações sociais – desigualdade, injustiça e exclusão. Como livrar esta instituição do seu legado autoritário e, simultaneamente, reformá-la no sentido de ganhar mais confiança da população em suas ações, são tarefas urgentes de qualquer líder político e da própria sociedade.
Um dos aspectos desta crise seria a persistente violação dos Direitos Humanos por parte do aparato policial. Em países autoritários a violência policial conta com o apoio do regime político. Em países democráticos, a brutalidade policial representa uma falha na responsabilidade seja do policial, da instituição policial, do Estado ou dos três fatores em conjunto. Afinal, a polícia é um dos braços armados do Estado.
A violação dos Direitos Humanos não é algo exclusivo dos regimes autoritários. A truculência policial desafia os sistemas políticos. As agências monopolizadoras do uso legítimo da força, mostram um surpreendente grau de autonomia junto às autoridades democraticamente constituídas. Existia a crença otimista de que com a democracia poder-se-iam estabelecer significativos patamares de respeito aos direitos humanos. É que a visão liberal estipulou que, com o surgimento da democracia, viria, necessariamente, o Estado de Direito.
Estado de Direito pressupõe existência de segurança jurídica e esta só pode florescer quando há uma ordem conhecida e respeitada. Ordem no sentido de que são pessoas que convivem sob determinada forma e não apenas um conjunto de leis. A Policia é a instituição responsável pela segurança dos indivíduos e de seu patrimônio neste tipo de ordem. Nessa ótica, é imprescindível que o Estado de Direito diminua a distância entre a ordem legal formal e sua aplicação.
“Sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos” (BOBBIO 1992, p.45). Um destes Direitos Humanos é o direito à segurança física. Neste contexto, a Polícia tem lugar destacado: é a principal instituição estatal encarregada de garantir este direito elementar.
Ainda não se conseguiu encontrar o mecanismo, especialmente em novas democracias, que explique o aperfeiçoamento dos Direitos Humanos. Embora se saiba que a democracia contribui para o avanço dos Direitos Humanos por várias razões.
Em primeiro lugar, a democracia é mais importante aos interesses dos cidadãos atenuando os conflitos entre os mesmos, e oferece canais não violentos para sua resolução. Com isso, diminui a repressão estatal. Numa democracia, só excepcionalmente, instrumentos de coerção física são utilizados e, assim mesmo, para se contrapor às ações daqueles que descumprem as normas democráticas legitimamente estabelecidas.
Em segundo lugar, por aproximar os cidadãos da lei, a democracia deveria protegê-los melhor, principalmente as liberdades civis necessárias ao funcionamento da democracia. As sociedades democráticas exigem o controle institucional social sobre o legítimo monopólio estatal dos meios de violência. Sem tal controle, o que é legítimo pode se tornar ilegítimo, aumentando as violações aos Direitos Humanos e ao Estado de Direito.
A Segurança Pública almeja um Estado antidelitual onde impere o respeito às normas legais e aos costumes. Ao se falar em prevenção de delitos, a presença policial, sobretudo a ostensiva, logo é lembrada como fator de diminuição dos delitos. Deste modo, a polícia militar é um bem social imprescindível para a sociedade, pois representa o teste da dominação. Por isso mesmo ela carrega uma dimensão política, pois intervém para favorecer a concepção de ordem pública predominante no momento da ação. Devido ao trabalho policial encerrar grande dose de discricionariedade e de poder monopolista, isto facilita a ocorrência de práticas brutais e/ou corruptas. Deste modo, uma polícia democrática é aquela que exerce o trabalho de policiamento de acordo com o Estado de Direito e com respeito aos direitos humanos.
A Polícia exerce funções contraditórias: ela tanto protege quanto reprime. Protege uma ordem baseada em interesses coletivos comuns e reprime os conflitos entre os grupos que não aceitam tal ordem. Tal contradição é bem capturada pelo conceito de uso legítimo da força, ou seja, o aceite por parte dos atores políticos do uso da força, mesmo que seja contra eles, desde que respeitados os critérios de controle social democrático. A legitimidade, lembra Bobbio,, “serve para distinguir o poder de direito do poder de fato. Democracias separam cuidadosamente o uso excessivo da força (quando a polícia usa a força em demasia) do excessivo uso da força (circunstâncias nas quais a força é utilizada com freqüência)”(2000, p.56.).
12 POLÍCIA E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
As instituições são criadas para atender às necessidades humanas, devendo submeter-se a um constante processo de adaptação, de sorte a responder às expectativas e anseios do momento presente. Ao longo dos anos, foi-se reconhecendo que valores como liberdade, democracia, direito e paz social só tinham sentido quando entendidos numa acepção mais ampla, quando vinculados à construção de uma sociedade justa e próspera. A liberdade dos excluídos não é idêntica à dos afortunados; a paz para os oprimidos não significa apenas a manutenção da lei e da ordem; a democratização nas regiões menos favorecidas pressupõe a conquista do bem-estar para todos (Itamar Franco).
A educação em direitos humanos para as polícias brasileiras é o principal veículo para se democratizar a segurança pública no país. Conforme exaustivamente apresentado neste trabalho, a promoção de uma educação em direitos humanos eficiente requer a quebra de paradigmas e ideologias forjadas em anos de práticas repressivas e autoritárias das instituições do Estado e, porque não dizer, da sociedade, por intermédio de uma revolução nos processos de ensino-aprendizagem. Isso teoricamente parece fácil, porém, na verdade, não o é. No entremeio das relações que envolvem todos os indivíduos da teia social, o poder em suas diversas formas e expressões se constitui em um grande entrave para a promoção das mudanças necessárias.
O preconceito sobre os temas que envolvem os direitos humanos também se constitui em um entrave para a divulgação e consolidação de tais direitos entre os policiais. Isto porque todos os esforços para a promoção das mudanças necessárias esbarram na idéia de que os direitos humanos só são evocados para proteger marginais. Este entendimento é repassado como conteúdo oculto nas disciplinas técnico-operacionais, que constituem o currículo escolar nos cursos de formação policial, por total descomprometimento dos professores e instrutores com a educação em direitos humanos. Daí a necessidade de se tratar os direitos humanos como objetivo transversal em todas as disciplinas dos cursos policiais. A educação em direitos humanos para as policias brasileiras está muito aquém das necessidades de democratização das forças de segurança do Estado.
A polícia necessita reformular os currículos escolares a fim de que os direitos humanos constituam-se em objetivo transversal para todas as disciplinas, assim como precisa sensibilizar e treinar seu corpo docente para a árdua tarefa de promoção dos direitos humanos em todos os níveis acadêmicos. Os espaços escolares e regulamentos necessitam espelhar, por meio do exemplo, o respeito à dignidade e às garantias individuais.
13. DIAGNÓSTICO DA PESQUISA DE CAMPO
A vida e a profissão do policial militar, entrelaçado com o da sociedade, tornam-se conjuntamente um paradoxo humano. Os policiais militares não são seres distintos, mas, sim, iguais a qualquer ser humano. Têm desejos, preferências e vicissitudes como todos. Incluímos aí também os erros, as falhas e o livre arbítrio que todos os homens têm.
A atividade policial-militar é fundamentalmente interpessoal, onde a prestação de serviços se faz numa infinidade de relações entre o PM e o cidadão de bem; o PM e o delinqüente; o PM e a vítima etc. Neste panorama de relações aparece o PM, como agente principal, a exercer seus diferentes papéis para atender a demanda da sociedade. Dentre eles se destaca, sem desmerecer outros, a função de administrador de conflitos, cuja característica própria é a de ser sistêmica e paradoxal.
Sistêmica por dar destaque nas relações de permanente interação com o ambiente, envolvendo o aspecto interpessoal, social, cultural e psicológico, já que o sujeito policial militar é, antes de tudo, um cidadão comum e como tal, sofre as influências do meio social em que vive e trabalha. Paradoxal por envolver situações de conflitos onde os opostos se confrontam, ou seja, o policial tem a missão de combater sujeitos que transgridem as leis, colocando em oposição o guardião da coletividade contra elementos da própria sociedade, devendo agir ora com o rigor necessário, ora com a cortesia que a própria sociedade exige.
O fato de o policial militar atuar no limiar desse processo, ora interagindo com a comunidade, ora se deparando com ocorrências críticas envolvendo violência, vítimas e agressores, a exigir-lhes um COMPORTAMENTO EQUILIBRADO dentro de um referencial de valores éticos e profissionais, resulta numa sobrecarga emocional estressante, pois quando o PM interage com a sociedade lhe é exigido cortesia e educação, quando lida com pessoas à margem da lei deve ser firme e até fazer uso da força necessária para reprimir a violência.
Tudo isso se inicia a partir do momento em que o cidadão civil ingressa na carreira policial-militar e passa a ser “cidadão policial-militar”. É nesse contexto que agrega e incorpora a filosofia policial-militar e a vida castrense; que é incutido em uma cultura baseada na hierarquia e disciplina, ética e moral, postura e compostura, tornando-se um verdadeiro ordeiro da sociedade, promotor da preservação da ordem pública. Só que quando o mesmo ingressa na Corporação já está com pelo menos um quarto de vida. Neste lapso de tempo tem incutido os prós e os contras da sociedade atual. “Cada sociedade tem a polícia que merece”, assim desabafa uma praça do 1º BPM, confirmando em um primeiro momento que as atitudes do policial militar refletem a própria estrutura da sociedade.
Por isso, podemos afirmar que o policial militar é radicalmente fruto da sociedade e do meio em que vive. Mas é unânime a opinião dos oficiais que possuem o curso de Direitos Humanos na possibilidade de educação e reeducação das praças, principalmente no prisma das normas que norteiam a atuação dos encarregados de aplicar a lei “porque vários que fizeram o curso já mudaram – oficiais e praças -, mas o trabalho tem que ser contínuo” (Cap PM Cláudio Silva). “Tudo é um eterno processo de educação, reeducação e fiscalização constante para correção de atitudes” (Cap PM Willer Abdala).
13.1 Entrevistas e Depoimentos
Analisando meticulosamente os dados colhidos na pesquisa de campo, conseguimos informações e respostas acerca de nosso problema lançado: o Policial Militar, no desempenho de sua atividade fim, sabe quando e como promover os direitos humanos?
De maneira coerente, imparcial e interpretativa, através dos argumentos citados pelos sujeitos da pesquisa, ou seja, através das informações representativas dos participantes, podemos afirmar e responder : SIM, O POLICIAL MILITAR SABE.
Podemos comprovar tal situação com algumas respostas dos questionários aplicados. 29 praças e 09 oficiais que não possuem o curso de direitos humanos responderam os roteiros de entrevista.
13.2 O Questionário
Vejamos algumas citações colhidas nos questionários aplicados.
Questão 3: Para a atividade policial militar, o senhor considera importante o conhecimento em direitos humanos? Por quê?
“Fundamental, porque a atividade policial tem na sua razão de ser garantir ao cidadão os Direitos Humanos, protegendo-o, inclusive de abusos por parte do Estado.” (Oficial da PMAM que não possui o curso de Direitos Humanos)
Vejamos as respostas das praças das Unidades Operacionais da PMAM:
“Sim, para que não cometamos nenhuma irregularidade que possa nos prejudicar no futuro.”
“Sem dúvida, pois na nossa atividade devemos pensar primeiramente nisso, pois direito humano se torna um dever para o policial”.
“Sim, pois muitos policiais que não exercem os direitos humanos acabam por denegrir a imagem da corporação com suas arbitrariedades.”
“Sim, para que não se repita erros do passado.”
Questão 3 - para as praças - :Você sabe ou tem alguma idéia do sejam os direitos humanos? As praças das Unidades Operacionais da PMAM responderam:
“É o respeito que temos por cada cidadão, respeitando-o em qualquer situação, independente de sua condição social”.
“Serve basicamente como proteção obrigatória a cada cidadão, independentemente de cor, raça ou religião”.
“Serve para garantir que tanto sua integridade física e moral sejam preservados.”
“São direitos de todos, mesmo que sejam infratores.”
Quanto ao questionamento envolvendo diretamente nosso problema, vejamos o que as praças responderam:
Questão 10: Em sua atividade policial militar de rotina, você sabe quando e como promover os direitos humanos?
“Sim, respeitando o cidadão e agindo dentro da legalidade.”
“Sim, fazendo meu serviço direitinho sem sair dos trâmites da lei, assegurando os direitos dos cidadãos, com certeza assim estou contribuindo com os direitos humanos.”
“Promover esse direito é trabalhar de forma a transmitir a sensação de segurança e dar apoio a qualquer solicitante.”
“Respeitando todos a quem for abordado. O cidadão infrator, que será tratado com mais rigor, não será agredido ou (sofrerá) qualquer ato de violência ou ofensa.”
Das 29 praças que responderam esta questão, três responderam “não”, e um respondeu “às vezes”.
Deste modo, a partir destes lacônicos depoimentos, pode-se perceber de forma clara que o policial militar desta corporação sabe quando e como promover os direitos humanos. Portanto, o policial militar sabe empiricamente, seja pela preleção ou outro meio de informação, e até pela prática do cotidiano, que tem o poder-dever de exercer sua autoridade, conferida pelo Estado para atingir objetivos previamente definidos, qual seja, a manutenção da ordem e segurança pública. Se ele, o policial, não agir na legalidade, pode incorrer em crime, seja prevaricando, seja abusando de sua autoridade. Evidente que a atividade do encarregado de aplicar a lei é deveras importante, entretanto, exige além da formalidade legal, o bom senso e o equilíbrio nas ações.
Foi perguntado aos oficiais se eles consideram que o policial faz mais uso da violência que da força necessária hoje na corporação. Um oficial relatou o seguinte:
-
Eu acredito que já tenha mudado, justamente por causa desses estágios que nós promovemos ao longo de quatro anos (...) nós temos realizado o EAP(...) os alunos que entraram desde 1999 eles já tem esses ensinamentos de direitos humanos. Então já houve uma grande mudança com relação a ação do policial na rua, mudou bastante, inclusive o tratamento como o cidadão (...) isso foi conseguido graças às instruções. Já houve mudança. Ainda tem algumas resistências mas que elas tem que ser quebradas através da instrução.
E algumas vezes, os abusos cometidos contra os destinatários do serviço policial militar perpassam não pelo desconhecimento do agente aplicador da lei, mas pela falta de bom senso em suas ações. Ele sabe, ou pelo menos tem exata noção de quando está extrapolando em suas ações, contudo confia que a população não o prejudicará em levar a conhecimento da autoridade competente, até porque muita das vezes a própria população desconhece seus direitos ou concorre diretamente para o delito, a exemplo das barreiras policiais que quando aborda condutores irregulares, estes preferem concorrer para atos ilegais como as famigeradas “propinas”do que levar o fato pela legalidade.
13.3 A gestão do conhecimento em direitos humanos
A Polícia Militar do Amazonas possui 25 policiais que fizeram o curso de direitos humanos promovido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha -CICV. Foi propósito desta pesquisa, verificar se estes policiais que possuem o curso de multiplicador da doutrina de direitos humanos têm oportunizado seus conhecimentos aos demais integrantes da tropa.
Pelos resultados obtidos, os referidos oficiais foram unânimes em afirmar que, de forma direta ou indireta, todos repassaram seus conhecimentos adquiridos no curso a parcelas da tropa. Conforme cita um oficial que possui o curso de multiplicador e instrutor da doutrina de direitos humanos voltado para a atividade policial: o senhor já teve a oportunidade de repassar esses conhecimentos à tropa?
Já, desde quando fui instrutor do primeiro curso que teve aqui.(...) já tive oportunidade quando comandei o corpo de alunos do CFAP, e sempre passando essa doutrina para a tropa, não só para aluno soldado, como para soldados, cabos e sargentos da polícia militar como um todo através do Estágio de Aplicação Profissional.-(EAP) Nesse estágio nós passamos a parte da doutrina principal de direitos humanos(...)
Entretanto, ao questionar as praças se ao longo de seu tempo de serviço, a corporação propiciou algum curso de capacitação cujo conteúdo tenha envolvido direitos humanos, as praças responderam negativamente. Afirmaram que depois de formados jamais a corporação propiciou conhecimentos da doutrina de direitos humanos, conforme afirmam alguns entrevistados: depois de formado, ao longo de seu tempo de serviço, a corporação propiciou a você algum curso de capacitação cujo conteúdo tenha envolvido direitos humanos? “Não, gostaria muito de fazê-lo”. E um outro diz: “há pouco tempo tive a oportunidade de fazer o curso de direção defensiva, mas não abordaram nada sobre direitos humanos”. Vejamos agora o que diz esta praça do 1ºBPM:
Não, desde que entrei nessa polícia nunca ninguém me disse nada sobre isso aí, sobre esse negócio de direitos humanos e nunca fiz curso nenhum porque nessa polícia só faz curso quem é oficial, soldado só rala. Curso? Só se for de ordem unida.
Assim, embora os oficiais que possuem o curso de direitos humanos pela corporação afirmem ter dilatado seus conhecimentos à tropa, contudo as praças questionadas responderam que não receberam conhecimento algum sobre isso. Este fato induz esta análise a duvidar da veracidade das informações prestadas, tanto pelos oficiais, quanto pelas praças. Entretanto, embora haja exagero pelas duas partes, considera-se que os ensinamentos da doutrina policial voltado para os direitos humanos ainda precisa ser mais conhecida, principalmente pelas praças, na medida em que são elas que mais lidam com o público.
O nível de entendimento da doutrina de direitos humanos voltado para a atividade policial, tanto dos oficiais quanto das praças, são bastante díspares, ou seja, não são semelhantes. Grande parte da oficialidade pesquisada conhecia pelo menos três instrumentos legais da doutrina de direitos humanos, enquanto as praças demonstraram ter noção tão somente derivado do seu empirismo.
Um fato interessante pela contradição que gerou foi quando se questionou, tanto a oficialidade quanto as praças pesquisadas, se de alguma forma responderam processo judicial encadeado pelo público civil. Nenhum dos pesquisados respondeu afirmativamente, o que suscita dúvidas quanto à veracidade das respostas, já que diariamente são registradas pelo menos três ocorrências na Corregedoria Geral da Polícia Militar envolvendo civis e pessoal da corporação.
13.4 A Visão da Sociedade Civil
Ouvir os destinatários dos serviços prestados pela corporação é de fundamental importância porque eles são os públicos alvos e quem faz juízo de valor, razão maior da perenidade da instituição. Na pesquisa de campo, foram entrevistados dois presos provisórios e quinze moradores da Zona Leste de Manaus, cujos resultados encontram-se analisados abaixo.
Questão4: Você considera o policial militar violento?
Eles tão com um comportamento bem melhor. Antigamente eu achava eles extremamente mal educados e grosseiros, mas atualmente eles tão bem melhores como seres humanos. Respeitam as pessoas. Eles não são aquela [polícia] que eram ante (morador do bairro Coroado, Zona Leste, Manaus).
“A polícia militar é a mais violenta que tem. Não tem pra onde correr. A polícia militar é na base da porrada. Militar é só negócio de espancar e extorquir as pessoas”(preso provisório do 3ºDP).
A visão da sociedade expressa a própria contradição que a população tem em relação à atuação da polícia militar. Enquanto uns tecem elogios e reconhecem que a instituição evoluiu no trato e respeito para com os destinatários de seu serviço, outros destacam negativamente o trabalho da Corporação junto à população, realçando um mau serviço prestado à comunidade.
Para a população pesquisada, a Corporação está deixando a desejar, pois a maioria considera ineficiente sua atuação no combate ao crime e no trato ao cidadão comum, entretanto, quando se perguntou em qual instituição ela mais confia, foi observado que é na polícia militar que a população mais acredita, quando comparada com outras instituições. “Dá pra confiar mais [na polícia militar] porque em todo caso, bem ou mal, eles tão mais presentes, mesmo às vezes agindo errado” (moradora do bairro Coroado, Zona Leste de Manaus:
Há que ser dito o fato de que a maioria dos entrevistados considerarem importante para as duas instituições, tanto a civil quanto a militar, o devido preparo técnico-profissional para os encarregados da segurança pública. Para eles, o que está faltando é o devido tratamento que se deve dispensar a ela. Ela clama por um policial mais respeitador, menos intolerante e abusivo.
Este fato vem de encontro ao que preconiza a doutrina de direitos humanos voltados para a atividade policial militar, pois recomendam que o aplicador da lei tenha conduta acima de tudo técnica e com senso de profissionalismo. O respeito ao usuário dos serviços policiais deve ser uma constante, conforme diz Crawshaw:
A relação entre polícia e direitos humanos está centrada nas noções de proteção e respeito, e pode ser uma relação muito positiva para diversas situações. Por exemplo o Código de Conduta para os funcionários responsáveis pela aplicação da lei, das Nações Unidas abrange normas gerais e específicas de comportamento na matérias como uso de força (art. 3º), confidencialidade (art. 4º), proteção a pessoas detidas (art. 5º e 6º), e respostas a comportamento não desejável por colegas de profissão (art. 8º). O art. 1º requer altos padrões de responsabilidade e competência profissional. (2001).
O que a população critica não é o uso da força em si, mas o uso desnecessário da violência. Para os entrevistados, embora saibam que na corporação existam bons e maus policiais, todavia consideram que a maior parte dos milicianos age quase sempre fora dos padrões aceitáveis, seja fazendo uso desnecessário da força, seja não sabendo se relacionar com a população quando esta lhe indaga dos motivos de uma simples abordagem. Por exemplo:
“Eu acho que a polícia é ineficiente porque.hoje em dia existem uns bom e uns ruim e mau policial porque a forma como eles nos tratam, nos abordam agente, são mito ruim, são muito...mau qualificados, sem educação”. (morador do bairro Zumbi, Zona Leste de Manaus).
“Da forma que fui abordado, vejo que fui constrangido e humilhado” (morador do bairro São José, Zona Leste de Manaus)
“Muitas vezes eles pegam menores que são detidos e batem neles, espancam eles, muitas vezes sem tá fazendo nada, só porque estão na rua. Era pra eles só deter né, e deixar os direitos cabíveis deles.” (morador do bairro São José I, Zona leste de Manaus).
Essa questão do trato arrogante e sem respeito que o policial militar usa expressa muita das vezes sua falta de técnica e de conhecimento para lidar com os destinatários de seu serviço. Prefere se impor pela força desnecessária ou por palavras nem um pouco agradáveis do que pela persuasão oral, pelas técnicas de relacionamento com o público existentes em manuais e livros. Inclusive a importância do relacionamento do policial com o cidadão é tão importante que o manual de abordagem em vigor na corporação, dispensa um capítulo inteiro sobre essa questão: “é de fundamental importância que o profissional da área de segurança do cidadão tenha conhecimentos sobre relações interpessoais, para que possa ter um contato mais saudável e sem interferência de comunicação no momento da abordagem. (DAN CÂMARA; CLÁUDIO, Manual de abordagem PMAM, s.d.).
Só para ilustrar o fato de que o policial militar abusa de seu poder e descaminha para a prática da arbitrariedade, cita-se o depoimento de um morador do bairro Zumbi, Zona Leste de Manaus:
Eu estava na minha motocicleta, no Zumbi. Parou uma viatura da ROCAM. Eu estava conversando com um amigo meu e eles foram logo me abordando. Me mandando ir logo pra parede, me revistando, falando que eu devia, que eu era um....me confundindo com um cidadão que eu não tinha nada a ver, falando que eu tinha fugido, feito um assalto. Me pararam e me revistaram. Nesse tempo eu era do exército. Aí eles me abordaram e começaram a me dar pressão. Botaram o revolver na minha cabeça. Não me deixaram me identificar. Um cabo da ROCAM, que era o chefe da guarnição, falou que não era pra me identificar, que o pessoal que é militar do exército era muito gaiato e folgado. Tentaram me espancar. Me deram um tapão, aí mandaram eu ir embora. Quando eu montei na minha motocicleta, eu olhei pra trás pra anotar o número da viatura e eles não deixaram . Teve um soldado que ficou apontando a arma pra mim e mandou eu ir embora.
Onde há segurança, necessariamente deve haver respeito pelos direitos humanos e a recíproca é verdadeira. Onde não se respeitam os direitos fundamentais sempre prevalece o arbítrio que geralmente culmina em violência desmedida e desonesta, gerando um fator de insegurança que é um grande mau da vida em sociedade. Certamente que a intenção dos policiais da temida ROCAM era impor o medo mediante o emprego da violência. O que é questionável em atitudes como a citada não é o fato da abordagem em si, mas sim a forma como evoluiu e terminou uma abordagem aparentemente de rotina.
A paz social depende da segurança que possuem as pessoas de não serem vítimas da violência, ainda mais dos agentes aplicadores da lei, de quem a sociedade não tolera atitudes como as citadas. Se há insegurança é porque os mínimos direitos do homem não estão sendo respeitados. A verdadeira segurança é incompatível com as atrocidades e arbitrariedades características das prisões ilegais praticadas pelos agentes de segurança pública. Em razão disso é que muito se comenta que a conduta policial deve mudar, deve se reciclar visando adequar-se às novas exigências e demandas sociais. Porém, parece que os doutrinadores possuem razão quando dizem que a polícia de hoje ainda está muito aquém dos padrões toleráveis quando a questão é relacionamento com o público. Manoel confirma:
Entretanto, o que acontece na realidade, é que, aberrações do dia-a-dia, como a prisão ilegal, a violação constante do domicílio, a submissão do indivíduo ao vexame e ao constrangimento e outros hábitos, antes tolerados e não punidos, será a partir de agora alvo de processo penal e disciplinar, que por certo, não permaneceram impunes em razão da pressão da própria sociedade. As detenções indiscriminadas, bem como as prisões para averiguação, que se tornam (sic) muito comuns no Brasil, constituem flagrante ilegalidade, sujeitando-se seus autores ao enquadramento por abuso de poder (2004, p.224).
Para SILVA, o novo texto constitucional invalida totalmente práticas de tortura utilizadas por policiais durante a vigência do golpe de 1964, já que a proteção à cidadania e aos direitos humanos tornou-se fundamento e princípio norteador pregado pela nova Carta Magna do país. O mesmo autor afirma que:
Com a extensão dos direitos individuais na nova constituição, a confissão, arrancada a qualquer custo, tornou-se prática mais difícil de ser adotada e é comum ouvir-se dos policiais que agora não podem mais trabalhar, como se só fosse possível trabalhar na base da bordoada e do “pau de arara”. (ibidem, 2003, p.177).
Logo, atitudes como as tomadas pela guarnição da ROCAM, são simplesmente inadmissíveis, haja vista que os procedimentos adotados invalidam totalmente aquilo que a corporação almeja, qual seja, oferecer um serviço com a qualidade esperada pela população.
Outro depoimento reforça também o fato de que integrantes da corporação fazem uso da farda e do bom nome da instituição para extorquir a população, conforme o relato de um morador do bairro Zumbi, Zona Leste de Manaus:
A gente caímos numa blitz, aí eu tinha esquecido minha habilitação, aí ele me abordou na blitz, aí eu falei pra ele, poxa eu esqueci minha habilitação em casa. Aí ele falou então: fala lá pro tenente pra ver se ele libera. Falou que o carro ia pro parqueamento, mandou eu sair do carro, revistou o carro todinho. Passamos por um constrangimento., abordou agente Botou agente na parede. Revistou a gente. Aí depois pra liberar a gente ele pediu cinqüenta reais.
Atitudes como as supracitadas vêm de encontro à teoria de que não é a bandeira dos direitos humanos que o policial tem pregado, mas sim da violência e do uso da força de forma indevida, que se origina em diversas causas concorrentes. Sobre isto Amaral complementa: “..a tortura, entre policiais e particulares (os não policiais) tem por causa, dentre outras, a ignorância, a prepotência e a falta de humanismo (consciência do valor supremo da dignidade do homem)”(2003, p.59).
Portanto, para a sociedade civil, a atuação dos integrantes da Corporação no que tange aos direitos humanos ainda está aquém do desejado, posto que os milicianos ainda confundem violência arbitrária com o emprego da força necessária, e isto foi confirmado na doutrina e ratificado na pesquisa de campo.
13.5 A Doutrina Castrense Contribui para o Desrespeito aos Direitos Humanos?
A doutrina diz que o treinamento da polícia militar reproduz valores militares de disciplina rigorosa, centralização das decisões, estruturas administrativas extravagantes similares às do exército, atividade agressiva da polícia contra os “inimigos” nas ruas, ênfase em grandes unidades especiais e operações táticas, e desrespeito pelas unidades territoriais que executam as tarefas rotineiras do trabalho policial. Segundo a teoria, “policiais mau tratados, desrespeitados, humilhados pelos seus superiores hierárquicos e esquecidos por suas instituição tendem a descontar a sua agressividade no cidadão” (ibidem, 2004, p. 11).
Segundo Balestreri:
Tais práticas trazem à tona a ideologia militar que ainda subjaz no imaginário das polícias militares (mesmo quando essas, teoricamente, parecem ter abraçado discurso mais afinado com a democracia): suposição muitas das vezes inconsciente, de que estamos em uma espécie de guerra não declarada e de que os policiais saem às ruas para enfrentar inimigos (2003, p. 47).
Ao serem questionados sobre o assunto, de forma relativamente semelhante, as praças responderam que há, sim, a possibilidade de agirem de forma agressiva ou abusiva em relação ao cidadão, sendo aí o alvo de seu serviço e fruto da rotina castrense, embora não haja consenso entre todos, confirmando o que os doutrinadores escreveram.
Citemos o exemplo de um policial do 1º BPM: “A tendência é que seja truculento com todos, até mesmo com sua própria família”.
14 .A IMPORTANCIA DOS DIREITOS HUMANOS PARA A CORPORACÃO
Você considera que nos dias atuais a polícia está de mãos atadas pelo direito?
“Se o PM trabalhar sempre correto ele nunca vai ficar de mãos atadas” ( Sd PM 4ª CICOM).
A importância da aplicação da doutrina de direitos humanos para a corporação está justamente no reconhecimento por parte da sociedade da necessidade de existir uma instituição forte e perene, que vele pela segurança de todos os membros da sociedade e que imponha o respeito não pelo uso indiscriminado da força, mas pela correta aplicação da lei.
“Fazendo meu serviço direitinho, sem sair dos limites da lei” (Sd PM 4ªCICOM).
Não é difícil, para um profissional de segurança pública, respeitar os direitos humanos, basta ele agir observando os mandamentos jurídicos os preceitos doutrinários e éticos para que respeite os direitos humanos; precisa tão somente “trabalhar sempre correto” como citou o soldado da 4ªCICOM. O PM precisa internalizar e compreender o fato de que o direito não evoluiu para tirar do policial sua autoridade, nem para proteger delinqüentes, como muitos imaginam, ele visa a tutelar os interesses da coletividade. Muito mais que simplesmente defender criminosos, a bandeira dos direitos humanos protege, inclusive, o próprio policial, já que se ele agir conforme as normas e a doutrina, o próprio PM estará na esfera de proteção dos direitos humanos, pois jamais irá ter dissabores ou mesmo perder o emprego se agir na legalidade, se trabalhar conforme preconiza a doutrina dos direitos humanos.
O policial precisa incutir nele que não é pela força desnecessária que se conquista o reconhecimento da população, mas, sim, pelas atitudes sempre corretas, honestas e embasadas na lei e doutrina policial militar.
15 CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
Tendo em vista a mudança do pensamento político reinante, e a busca e aperfeiçoamento da democracia em nosso país, acreditamos que a instituição Polícia Militar do Amazonas tem por obrigação o acompanhamento dessas mudanças para tornar-se uma instituição atualizada, humanizada, perene e reconhecida.
Está mais claro nos dias correntes saber que tipo de polícia a sociedade deseja. Ela quer uma instituição que respeite cada vez mais os direitos fundamentais do cidadão, que busque servir e proteger gerando sensação de segurança. A comunidade não mais deseja uma polícia arbitrária que atua às margens da lei e da ordem constituída.
Estamos, Assim fazendo, temos a vontade não de esgotar o tema em si, mas colaborar no processo de reverter a imagem distorcida de nossa instituição frente à sociedade. Insatisfeitos sempre existirão, mas que este número seja menor se depender de nosso trabalho. Que nos preocupemos menos em ser somente o “braço fardado e armado” dos governos estaduais, mais em ser a força em favor da pessoa humana na defesa de seus direitos à vida, à liberdade e a uma vida digna. O início está em humanizarmos internamente nossas polícias, para que a humanização parta como reflexo da polícia. Cada polícia tem os homens que merece, assim como cada sociedade tem a polícia que merece. E a sociedade amazonense merece sim uma polícia mais humanizada, menos abusiva e mais próxima da população.
Mas por onde começar? Eis uma indagação muito válida para o momento e a resposta quem nos dá é um instrutor da doutrina dos direitos humanos voltados para a atividade policial:
(...) eu sou partidário de uma polícia cidadã. De uma polícia inteligente. E como sempre militei na área de instrução, sempre observei que a grande necessidade é de haver uma mudança. Uma mudança comportamental. Então essa parte de direitos humanos seria, no caso, um ponta pé inicial. A minha expectativa é justamente dar o ponta pé inicial através dessas instruções de direitos humanos.
Contudo, ainda estamos no início dessa jornada. É preciso, ainda, investir muito mais na formação dos operadores diretos de segurança pública e na melhoria de suas condições de trabalho e de vida. Nas Academias e Escolas de Polícia, por exemplo, bem como na lide diária dos policiais, faltam referenciais teórico-práticos mais claros que possam ajudar a guiá-los na senda do protagonismo cidadão, sem abrir mão de seu papel específico de promotores de segurança pública e consequentemente dos direitos humanos. Apesar disso, como dissemos, ainda nos falta muito, por exemplo, na área de recursos didático-pedagógicos, bem como na de publicações de cunho doutrinário, voltadas ao fazer segurança pública. Não há, em outras palavras, suficiente pesquisa ou suficiente manancial reflexivo escrito quando se trata de polícia. Tal carência acentua-se no campo das inter-relações entre polícia e direitos humanos. E quando existem, são pouco divulgados, a exemplo dos manuais e regulamentos em vigor na corporação, cujo acesso nem sempre é facilitado.
As recentes transformações pelas quais vem passando a sociedade brasileira e consequentemente, a sociedade local, fruto da nova ordem social, geram mudanças de paradigmas e ideologias, exigindo das instituições posturas que se coadunem com um estado democrático de direito. Contudo, essas mudanças institucionais não ocorrem automaticamente, como se fossem uma simples conseqüência da ideologia democrática instituída.
Conforme Pinheiro: “A instalação de um governo civil eleito democraticamente não necessariamente significa que as instituições do Estado irão operar democraticamente”(1997, p.47)
No momento de parada deste trabalho, não damos totalmente por encerrado, pois estudar Direitos Humanos é compreender o status dignitais dos homens. E o policial militar não está fora deste contexto. Mais que tudo, somos obrigados a praticar Direitos Humanos e agir de acordo com a lei. Daí seu grau de importância.
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